Uma rapariga chamada Alice

Há muitos anos conhecia uma rapariga chamada Alice, e dos meus três anitos — a minha memória não consegue recuar para antes disso — ela parecia-me a autoconfiança em pessoa, bonita, vaidosa, com os cabelos lisos até ao fundo das costas e com os olhos sempre muito maquilhados, a roupa sempre impecável, os sapatos de salto alto para ganhar os centímetros que lhe faltavam, nunca se esquecia do perfume, alegre e namoriscadeira, sempre a cantar as músicas da moda, sempre com uma fila de candidatos a namorados à espreita, do género olha que coisa mais linda / é ela que passa, só que não estávamos em Ipanema, o género de rapariga que deixava todos os que a viam completamente embasbacados, pele de porcelana e uma enorme cortina de cabelo negro liso que lhe descia até ao fundo das costas, que a Alice mantinha liso à custa de papel vegetal e ferro de engomar porque não havia dinheiro para cabeleireiros, ela estendia a cortina de cabelo na tábua de passar a ferro e a irmã cobria-o com papel vegetal e passava-lhe com o ferro em cima, ainda me lembro de as ver ali, e depois trocavam, era a outra quem deitava o cabelo na tábua e a Alice passava-o a ferro, o cabelo era o seu maior orgulho até ao dia em que ficou preso no tear da fábrica onde ela trabalhava e tiveram de lho cortar à pressa com uma tesoura para a Alice não ficar sem cabeça, só que era a sério, não era nenhuma ameaça da Rainha de Copas, e parece-me que desde esse dia a Alice perdeu a força tal como aconteceu com o Sansão, quando cortou a cortina de cabelo negro que lhe descia até ao fundo das costas parece que perdeu a alegria de viver, e durante muito tempo ainda se maquilhava e vestia-se impecavelmente e continuava bonita mas sem o fulgor de antes, e aos poucos e poucos deixou de ser a rapariga encantadora que irradiava felicidade e passou a ser uma sombra do que era, a saúde começou a falhar e os problemas a miná-la, a idade começou a marcar-lhe o rosto e tudo o resto, e hoje a Alice é um Sansão sem forças, que desistiu de lutar como se a vida já não importasse, já não tem sonhos, já não tem esperanças, já não se pinta, já não se veste impecavelmente nem usa saltos altos porque os joanetes e a coluna não lhe permitem, e já não tem a cortina de cabelo negro a cair-lhe liso até ao fundo das costas, porque um dia há muitos anos atrás a força que tinha ficou presa talvez para sempre nas teias de um tear.

23/Maio/2008

A ouvir: A Wither Shade of Pale, Procul Harum

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