There will be blood...

Com a devida vénia ao Yoshitomo Nara.

27/11/2008

A ouvir: Henry Lee, Nick Cave & PJ Harvey


86-60-86

Parece que a Comissão Europeia quer mudar a lei que determina quais as formas correctas que as frutas, legumes e demais produtos hortícolas devem ter para poderem ser vendidos, a desculpa é a omnipresente e omnipotente crise que tudo permite e que tem a culpa de tudo, ninguém se lembra de culpar os culpados da crise, só se lembram dela e pronto, mas não era sobre isso que estava a dar às patinhas, era sobre as medidas politicamente correctas que as frutas e os vegetais têm de ter, uma espécie de 86-60-86 para cenouras, batatas, nabos, agriões, maçãs, peras, laranjas, tangerinas, limões, abóboras, ananases, melões, acelgas e mais uma infinidade de coisas, até mesmo as bananas (mas quanto a essas o Alberto João deve ter arranjado alguma forma de virar o bico ao prego), medidas essas determinadas por alguém que nunca na vida deve ter pegado numa enxada, enfim, já me estou a perder, esta leizinha sempre me fez uma certa confusão, porque apesar de para os coelhinhos as cenouras serem sempre cenouras, há muita gente por aí a passar fome e não se importaria de ter maçãs com o calibre x ou a coloração y, e muito menos a importar-se de passar três anos a comer unicamente carne de frango, ai que horror, há tantos que em três anos não têm sequer carne para comer e quem se queixe de comer sempre o mesmo, adiante, mas mal a comunicação social - a.k.a. bando de abutres ou embustes - começou a papaguear sobre a intenção de Bruxelas - que até devem ter fixado um número máximo de folhas que as couves de Bruxelas podem ter para virem parar aos pratos - estava eu a dizer que assim que a notícia foi divulgada veio logo a Confederação de Agricultores a grasnar que assim não podia ser, que eram contra, e pensei sempre que o interesse dos agricultores era cultivar para vender mas parece-me que essa tal confederação está mais interessada em cultivar subsídios, quando a lei surgiu ficaram furiosos e a berrar «mas então o que vamos fazer aos produtos que não encaixam nas medidas?» até que algum burocrata qualquer deve ter encontrado uma solução final para os pobres vegetais e frutas que não cumpriam os rigorosos 86-60-86, mesmo sabendo que havia gente a morrer à fome, mas agora que querem voltar atrás por terem finalmente percebido o absurdo e o paradoxo que é determinar medidas mínimas para a comida numa época como a que vivemos, e vêm os tais agricultores demonstrar a sua condição de eternos insatisfeitos a refilar por tudo e por nada.
Mas o que é que interessa se a cenoura tem 3 ou 5 cm de diâmetro médio e se mede 10cm ou 15? Para os coelhinhos que todos somos, uma cenoura é sempre uma cenoura...
18/11/2008
A ouvir: A Beautiful Lie, 30 Seconds to Mars

Pequenos desprazeres

Depois de uma lista de pequenos prazeres, lembrei-me de postar o seu némesis, a antítese, o oposto, o preto daquele branco, para manter o equilíbrio, o yin-yang ou lá o que raio, e enumerar uma série de coisas que odeio, são mais de dez, eu sei, mas num dia em que o meu estado de espírito só é comparável ao de um pittbull com dor de dentes, tinha de encontrar uma forma de dar azo à minha fúria interior.
Vamos lá a ver, coisas que realmente detesto - sim, detesto, ódio é uma palavra demasiado forte:
- sapos, tanto os bichos propriamente ditos como os outros, os figurados. Não há nada mais pavoroso, asqueroso e uma série de outras palavras acabadas em -oso do que um batráquio, nem sequer o do Vento nos Salgueiros;
- partir loiça, não importa se é uma peça herdada da minha avó ou um copo da loja dos 300. Há quem ache um verdadeiro anti-stress atirar uns quantos pratos ou copos à parede para os escaqueirar, mas partir o que quer que seja deixa-me completamente fora de mim;
- rasgar os collants;
- a televisão aos berros;
- xicos-espertos, desde os que atravessam o carro à nossa frente aos que nos empurram à porta do metro para ficar com o único lugar livre que há aos que furam as filas e que cometem todo o tipo de atropelos ao civismo;
- esquecer-me dos aniversários, e por falar nisso não me posso esquecer que hoje há um;
- música pimba;
- pessoas a tentar imitar o sotaque brasileiro para se armarem em poliglotas;
- o tique-taque dos relógios (já cá faltava o meu ódio patológico aos relógios);
- torneiras a pingar, ping, ping, ping, ping;
- diospiros, dão-me náuseas a ponto de nem sequer conseguir tocar-lhes nem suportar ver alguém a comê-los;
- ficar lavada em lágrimas por causa das cebolas;
- apanhar choques na porta do carro ou noutro sítio qualquer, faz-me parecer uma enguia eléctrica;
- ver telejornais;
- pedintes de mão estendida, particularmente os da Baixa que se espojam pelo chão e que nos agarram os tornozelos enquanto grasnam «fome!fome!»;
- telemóveis com toques estúpidos, desde arrotos a assobios a qualquer outro som que não seja o de um telefone a tocar;
- cartões de crédito ou aqueles agiotas com nome pomposo de instituições de crédito pessoal;
- reality-shows;
- o cheiro a peixe;
- vinagre;
- a sensação de que estou a ver as peças do dominó a cairem umas atrás das outras e a impotência de não poder fazer nada para travar essa queda.

17/11/2008
A ouvir: The Kill, 30 Seconds to Mars

Something old, something new

De há alguns anos para cá, talvez para contrariar o correr dos minutos, tem havido uma nítida preferência dos consumidores por coisas novas com aspecto retro ou vintage ou lá o que quiserem chamar-lhe, mas com as funcionalidades do dias de hoje, e em Inglaterra chamaram a este fenómeno retrolution, ou retrolução, desculpem-me o neologismo mas não encontro melhor termo, e acho que isto começou de mansinho com a reedição dos famosos carochas pela VW que afinal pouco tinham que ver com os originais — o original é sempre melhor, parece chavão de uma publicidade qualquer mas é verdade —, e depois foi a Chrysler a criar um modelo que em tudo fazia lembrar os carros antigos dos anos 40, e agora há aqueles frigoríficos a imitar os dos anos 60 mas lacados com cores berrantes e com a eficiência energética dos dias de hoje, ou então algo que é mais notório fora do país, com casas e palacetes antigos recuperados e com a mais-valia do aquecimento central e do ar condicionado e do recuperador de calor e essas coisinhas todas, e que dizer das tendências de moda que recuperam as roupas do tempo das nossas avós e chamam-lhes vintage e que custam verdadeiras fortunas, será que o Fukuyama tinha razão e chegámos ao fim da história e não há mais nada para inovar, e agora é preciso reutilizar as ideias que já existem, será que é uma questão de falta de recursos ou não passará de uma epidemia de preguiça colectiva, «para-quê-inventar-coisas-novas-se-uso-as-que-já-existem-e-chamo-lhes-retro-ou-vintage-ou-outra-coisa-qualquer-e-todos-vão-achar-que-é-o-máximo», enfim, já nem sei o que estou para aqui a escrever, parece que o tempo passa tão depressa que estamos a fazer tudo para nos agarrarmos ao passado, como nos filmes de cowboys — cóbois de acordo com o dicionário novo — com as diligências a tentarem fugir aos bandidos e eles agarrados às traseiras e a serem arrastados pelo chão, é curioso ver que nos anos 60 e 70 era tudo com aspecto tão futurista e inovador e agora que estamos no futuro e na era da inovação queremos voltar atrás, carregar no botão rewind ou mesmo no stop mas não dá, o relógio, o nosso maior carrasco, continua sempre com o seu impiedoso tique-taque-tique-taque-tique-taque-tique-taque, e nós, os peõezinhos deste xadrez macabro continuamos a olhar para a miragem do passado e a querer fugir aos ponteiros implacáveis que nos apertam e oprimem.
13/11/2008
A ouvir: Ship of Fools, Erasure

Pequenos prazeres

Há uma série de pequenas coisas que tornam este tique-taque dos minutos mais suportável, e lembrei-me de fazer uma lista das que me vêm agora à cabeça:

- acordar de manhã com as gargalhadinhas do meu monstrinho das bolachas a rebolar na cama e a brincar com o Boris;

- o calor dos braços do dono dos olhos negros mais belos do mundo a envolver-me;

- afundar as mãos no pelo de um gato ou de um cão ou de um coelho ou qualquer outro bicho felpudo;

- estar sentada no cabo da Roca a sentir o vento na cara e a ver aquele mar imenso bravo e desafiante lá em baixo;

- o cheiro da erva acabada de cortar;

- uma chávena de Earl Grey quentinha;

- vestir uma peça de roupa lavada com aquele cheirinho a amaciador;

- estar na cama no meio dos cobertores e lençóis de flanela e ouvir a chuva a cair lá fora;

- comprar brinquedos novos para levar para uma qualquer instituição e imaginar o brilho nos olhos da criança que os irá receber;

- o piar de um mocho;

- ler o Cem Anos de Solidão ou A Imortalidade ou Jardins de Kensington;

- ouvir o Peter Gabriel a cantar Summertime do Gershwin;

- chegar a casa e ver o meu monstrinho das bolachas a correr na minha direcção e a abraçar-me;

- colher miosótis no meio de um campo verde;

- passear pelas ruas de Salamanca e comer um gelado na Plaza Mayor;

- as luzes do Natal;

- embrulhar presentes;

- ir a um museu de brinquedos e imaginar que tenho outra vez quatro anos e que não preciso de contar os minutos.

07/11/2008
A ouvir: Wonderful Life, Black

Rest in Peace

Há pessoas cuja existência nos passa completamente despercebida até ao dia da sua morte, dia esse em que alcançam a fama, e o Luís Miguel era uma dessas pessoas, era um rapazinho que andava na mesma primária que eu e que numa tarde de Santo António foi atropelado por um carro à porta de casa pondo fim à sua vida anónima de oito anos, e é curioso porque nunca reparara nele e subitamente morre e torna-se imortal, imortal ao ponto de vinte e tal anos depois de ter morrido há alguém que se lembra da morte dele num texto de um blogue qualquer, e mesmo não me recordando dele lembro-me do funeral, talvez por ter sido a primeira vez que fui a um, e se hoje é politicamente incorrecto obrigar crianças de seis anos a ir a um funeral, todas vestidinhas de branco e com um cravo branco na mão para deixar ao coleguinha morto, na altura não era, e lá fomos todos em fila indiana de cabeça baixa com a flor murcha do calor a tombar-nos das mãozinhas, tivemos todos de passar defronte do caixão e olhar bem para a cara dele num exercício mórbido de prevenção rodoviária, «olha-bem-para-a-cara-do-Luís-Miguel-se-ele-não-tivesse-saído-de-casa-a-correr-sem-olhar-para-os-lados-não-tinha-morrido», e depois ainda nos obrigaram a ir atrás do caixão até ao cemitério, e recordo-me de uma mulher a desmaiar e dos gritos das pessoas que lá estavam, certamente da família dele, para quem o Luís Miguel não era um rapazinho qualquer, mas sim filho, irmão, neto, sobrinho ou amigo, não sei porque diabos nunca consegui esquecer-me da morte do miúdo se nem sequer o conhecia, enfim, talvez me tenha vindo agora à cabeça por causa do dia dos finados, das romarias aos cemitérios para visitar as sepulturas de pessoas que mal conheciam em vida mas fica bem ir lá deixar umas velinhas, ou então as que se recusam a deixar os mortos morrer e que preferem viver no passado porque é mais fácil enfrentar a dor, eu, pessoalmente, odeio cemitérios, são lugares aonde qualquer um de nós só deveria ir uma vez, a definitiva, fazem-me lembrar aquilo que quero esquecer, e que é a certeza e a inevitabilidade de, mais cedo ou mais tarde, o que aconteceu ao Luís Miguel ir acontecer a todos e a cada um de nós.
01/11/2008
A ouvir: Stairway to Heaven, Led Zeppelin