A cauda que abana o cão

Tirando os cegos — invisuais, porque temos de ser politicamente correctos —, não deve haver pessoa nenhuma no mundo que nunca tenha visto um cãozinho a abanar a cauda, e sempre que isso acontece é por uma razão (geralmente o bicho está contente ou expectante), e seja qual for essa razão, ela existe, e se não se vêem os coelhos a abanar a cauda é porque ela é demasiado pequena, mas enfim, lá estou a divagar, aqui o que interessa é a cauda e o cão, e lembro-me de uma vez ter lido uma coisa no manual de Economia do Paul Samuelson que me fez rir durante algum tempo, até ter constatado que realmente o senhor tinha razão, e era uma frase muito simples, não me recordo já em que contexto era, penso que seria por causa da lei da oferta e da procura, mas dizia que «não é o cão que agita a cauda, é a cauda que agita o cão», sei que o verbo agitar não é o correcto só que era o que lá estava escrito, quem traduziu o livro não devia saber o que quer dizer «wag», e também me lembro de um filme espectacular do Barry Levinson com o Robert de Niro e o Dustin Hoffman chamado «Wag the Dog» que teve o infeliz título português de «Manobras na Casa Branca» (hoje acordei com vontade de cascar nas traduções, perdoem-me, são os ossos, não do cão, mas do ofício) e cujo princípio era basicamente o mesmo, não é a causa que provoca o efeito mas sim o efeito que produz a causa, parece algo que contradiz as leis da física mas se calhar o defeito é meu, e o filme narrava uma situação em que a realidade acabou por imitar a ficção, e uma vez mais as coisas acontecem ao contrário, era um caso em que, para se distrair a atenção da opinião pública americana de um crime ocorrido na Casa Branca, um estratega (De Niro) encenava uma suposta guerra com a Albânia, um país completamente desconhecido dos americanos, esse povo que de geografia mundial apenas sabe onde ficam o Canadá e o México só porque fazem fronteira com eles, porque de resto não sabem onde fica mais nada, e esse estratega decidia contratar um produtor falido de Hollywood (Hoffman) para encenar essa guerra como se de um filme se tratasse e até conseguiam uma estrela (Woody Harrelson) para fazer de soldado herói da suposta guerra, e qualquer semelhança com a realidade que posteriormente veio a acontecer deve ter sido pura coincidência, ou talvez não, e ao lembrar-me dessas duas coisas, a citação do livro e o filme, lembrei-me que cada vez mais é realmente a cauda a abanar o cão, e não o contrário, como os combustíveis que aumentam de cada vez que há uma notícia sobre o preço do crude — esquecem-se sempre de mencionar que o barril é negociado em dólares e que ao mesmo tempo que o crude sobe o dólar desce e na volta fica tudo na mesma — ou sobre um oleoduto ou uma plataforma que se incendiou ou um petroleiro que encalhou ou um fulano que se fez explodir num mercado algures no Médio Oriente (como se isso fosse alguma novidade!), ou então as notícias que davam conta do aumento das taxas de juro que faria disparar as prestações do crédito à habitação quando o dito aumento só começou a verificar-se mais de dois anos depois desse alarmismo patético, ou ainda do que se verificou há umas semanas sobre a história do eminente aumento do preço do pão em 50% e da bica a um euro, e quem vê essas notícias pensa assim «fixe, que desculpa porreira para aumentar os rendimentos, vou aumentar e depois ponho as culpas no governo, e com o que vou ganhar sempre vai dar para mais um Audi novo para o rapaz, tadinho, o BMW já deu o que tinha a dar», e não é só em relação aos preços, cada vez mais me convenço de que nos dias de hoje a ordem das coisas se inverteu completamente e que se começa do fim para o princípio, como o vídeo dos Enigma, só que na vida real não regressamos à inocência, e sim, o Samuelson tem razão, é na verdade a cauda que abana o cão.

18/Abril/2008

A ouvir: Loser, Beck

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