Da morte sem sentido ou do sentido da morte

Faz hoje precisamente vinte anos que acordei com um autêntico cenário de guerra no quintal, uma carnificina perpetrada por um desconhecido cão raivoso, que atacou as coelheiras e estraçalhou impiedosamente mais de vinte coelhos, bebés incluídos, e apesar do tempo que passou ainda me lembro da minha mãe a abanar a cabeça de incredulidade e a balbuciar com lágrimas nos olhos «não há direito, não há direito», e de todos os coelhos só sobraram dois bebés que ficaram escondidos no meio da palha, o coelho branco (ao qual conseguira salvar da morte certa quando partiu uma pata) estava estendido com os olhos esbugalhados em cima das couves, e um sem-número de outros atirados meio comidos para o meio da rama das batateiras, uns quantos só até meio do corpo como se tivessem passado em cima de uma mina terrestre, mas não foi uma mina, foi algum cão o autor de semelhante massacre, um cão que apenas matou por matar, se tivesse sido para comer, mas não, quis apenas matar pelo prazer de de matar, e lembrei-me agora disso, por vezes fecho os olhos e lembro-me de todo aquele sangue e pedaços de coelho espalhados um pouco por todo o quintal, deve ser daí que vem a minha fixação por coelhos, depois foi preciso alimentar as duas bolinhas de pelo que se salvaram das mandíbulas do selvagem, pegar nelas com muito cuidado e dar-lhes leite por um biberão que não era biberão, era uma garrafa de Spur Cola com uma tetina de borracha comprada na farmácia, e depois quando já comiam dar-lhes raspas de cenoura e folhas de alface e cascas de batata, alimentá-los à mão enquanto os afagava, mas isso já é outra história, e não sei porquê nunca consegui esquecer-me desse acontecimento, recordo-me de na altura ter pensado na razão de tudo aquilo, no sentido daquele autêntico massacre, e vinte anos depois ainda me pergunto porque é que as pessoas têm de morrer, ao mesmo tempo que me surpreendo a responder-me «porque é assim que tem de ser, tudo o que nasce tem de morrer», e por mais que me interrogue e me questione sobre o sentido da morte ou da morte sem sentido chego sempre a essa conclusão, seria bom que todos nós pudéssemos morrer sem dor, sem necessitarmos de tubos enfiados pelo nariz adentro nem tratamentos de quimioterapia a queimar-nos as veias por dentro nem cirurgias inúteis nem injecções de morfina para tentar inutilmente lutar contra o veneno que nos rói por dentro, seria bom se não tivéssemos de olhar para os olhos das pessoas e ver o medo neles, o pânico de morrerem, ver a certeza da morte e não poder fazer nada para a evitar, sem termos de lhes agarrar nas mãos com força e dizer «está tudo bem, vais ficar bom, não tenhas medo» mesmo sabendo que é mentira, sei que faz parte da ordem natural das coisas os filhos enterrarem os pais e os que vivem enterrarem os que morrem, até aqui consigo compreender, há quem ache que a morte não tem sentido mas tem, mesmo que não o entendamos à partida, tudo acontece por uma razão, e até entendo que tenhamos de morrer, só não entendo é o porquê de termos de sofrer para isso.
21/Abril/2008

A ouvir: Death Is Not The End, Nick Cave & The Bad Seeds

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