Oito e oitenta

Ainda não há muito tempo havia censura em Portugal, como todos nós sabemos, e o difícil era saber-se o que quer que fosse; livros eram um produto de luxo a que nem todos podiam aceder — mas também livros para quê, com tanto analfabeto que havia — e era do senso comum que tudo o que aparecia nos poucos jornais e revistas que havia, e também nas notícias que nos entravam pela casa adentro religiosamente às oito horas, tudo o que se dizia e escrevia era passado a pente fino (a caneta azul, melhor dizendo) e só sabíamos aquilo que outros queriam que soubéssemos, e ponho-me a pensar até que ponto é que isso realmente mudou, pois parece-me que quanto mais nos dizem menos sabemos, somos cada vez mais manipulados pela comunicação social, se virmos a mesma notícia em vários órgãos diferentes todos dizem coisas diferentes, num jornal morreram seis pessoas numa atentado no Médio Oriente (como se isso fosse notícia, para mim só o é um dia em que não há nenhum, e acho que nunca aconteceu alguém dizer «hoje não houve atentados e não morreu ninguém»), e se virmos outro jornal já morreram dez, e outro ainda diz que foram só quatro, e mais um que refere que além dos 25 mortos também morreram quatro cães, três gatos e um número indeterminado de peixinhos dourados, e os canais de televisão mostram-nos logo imagens chocantes de aquários escaqueirados e os pobres peixes no estertor da morte, e depois do telejornal acabar há-de vir um comentador para discutir as implicações da morte dos peixinhos no contexto do equilíbrio geopolítico da região e estar duas horas a discorrer à volta disso, enfim, os nossos pais corriam risco de vida só por ouvirem as rádios proibidas pelo regime que não queria que o povo soubesse nada do que se passava do lado de fora do rectângulo, e hoje em dia somos bombardeados com informação por todo o lado, e mesmo que recusemos o jornal gratuito que insistem em oferecer-nos na estação de metro — temos de nos manter informados nem que seja à força —, o entregador vem a correr atrás de nós para nos obrigar a levá-lo até nos virmos obrigados ou a aceitar o dito ou a berrar um ou outro impropério para afastar o tipo, mas pronto, mesmo que tentemos fugir à informação ela vem ter connosco, e não deve tardar muito até encerrarem os que lhe tentam resistir numa instituição de reeducação para nos fazerem mais ou menos o que fizeram ao Alex de A Laranja Mecânica, abrir-nos os olhos à força e obrigar-nos a ver notícias, mas quem controla o filme são eles, e ponho-me a pensar em quem serão eles, não sou por teorias da conspiração nem nada que se pareça, creio que se deve tudo a um acumular de coisas que estão tão interligadas mas que parecem uma só, como um género de corrente que é só uma peça mas composta por vários elos, ou então uma bola de neve, milhões de pequenos flocos que se juntam num amontoado que em última análise tem o poder de gerar destruição onde quer que passe, e quem ler isto pode achar que sou demasiado fria e insensível em relação aos atentados mas isso é devido a se terem tornado tão banais, como quando antigamente quase não existiam pizzarias e comer pizza era um acontecimento, e hoje há tantas que nem lhes ligamos, e penso aqui para com os meus botõezinhos de coelho branco que com a informação é um pouco assim, só lhe dávamos valor quando ela era escassa, e no fundo tudo se resume a isso, em economia o valor de um bem é determinado pela sua abundância ou escassez, durante a ditadura a informação era preciosa porque quase não existia mas hoje em dia há tanta que já não tem qualquer valor, e lá diz o povo e com razão que não há fome que não dê em fartura…

18/Março/2008
A ouvir: Ordinary World, Duran Duran

No comments:

Post a Comment