Antes era assim

Antes, quando eu tinha a tua idade, o Natal não era como agora. Era sempre igual, todos os anos, e a única coisa que mudou foi quando o teu avô deixou de ir ao mato cortar um pinheirinho pequeno e se comprou uma árvore artificial. Até os bonecos do presépio continuam a ser os mesmos de que me lembro, e a maior parte das bolas e enfeites da árvore também, tirando uma fita meio esfarrapada que sobreviveu ao ataque de um gato que se lembrou de andar à bulha com as luzinhas.
Começava uns dias antes, com a tua avó a encher uma panela gigante de água para pôr o bacalhau de molho, e com o enorme cacete trazido da padaria para ficar a endurecer, que as rabanadas tinham de ser feitas com pão duro.
Depois, na manhã do dia 24, ia-se ao mercado comprar os enormes pés de couve, isto quando não se iam cortar directamente ao quintal. A seguir ao almoço, ia-se para a cozinha e era aí que começava a diversão. A primeira coisa a sair era a aletria, sempre duas travessas, uma com canela e outra sem porque éramos muitos e havia que agradar a todos. Eu preferia-a a sair do tacho, ainda quente, depois era-me indiferente. A seguir vinha o leite-creme, e metade ia sempre para uma travessa de pirex até solidificar para depois se queimar, e o resto para uma outra para os que não o queriam queimado. É engraçado, sabes, não me lembro como era essa, só me recordo da de pirex, era sempre a mesma porque é mais alta. Ainda anda lá por casa da tua avó, depois mostro-ta.
Enquanto isso faziam-se as rabanadas, umas de leite e outras de vinho, que eram só para o teu avô que não gostava de leite. O cheiro a açúcar e canela inundava a cozinha. Por vezes a tua avó também fazia bilharacos de cabaça, não sabes o que é?, é abóbora, aqui diz-se de outra maneira. E também havia bolinhos de côco, tirando quando alguém se esquecia de comprar as caixinhas de papel frisado, as mesmas que eu costumava usar para fazer candeeiros para as casas das minhas bonecas. Ah, já me estava a esquecer, a torta enrolada com recheio de chocolate. Se fechar os olhos ainda consigo ver a tua avó a desenformar o bolo feito num tabuleiro rectangular de alumínio para cima de um pano lavado polvilhado com açúcar, e a seguir a barrá-lo com chocolate derretido, nada de muito elaborado, apenas um rolo de chocolate de culinária derretido num tacho, e depois enrolava-o, e eu via o vapor a sair do bolo quente e achava na minha inocência própria da infância que o que eu via era o cheiro do bolo acabado de fazer.
Para mim sobrava a tarefa de partir as nozes e de as enfiar dentro dos figos cortados, as sandes como o teu avô lhes chamava. Gostava de as partir com um martelo, fazia-me sentir poderosa, «toma lá, sua noz tonta, já dei cabo de ti», e depois de recheados os figos com as pobres nozes massacradas iam parar a um prato de vidro castanho estriado, também te posso mostrar qual é.
E com o aproximar da hora do jantar, eu deixava a cozinha para os adultos. O bacalhau era cozido numa panela enorme e as batatas e as couves noutra, sem esquecer o bicarbonato de sódio para as couves não ficarem amarelas e as batatas pretas. 
Na sala abria-se a mesa, metia-se a toalha de natal que só era usada duas vezes por ano e que ainda hoje, passado trinta anos, ainda está inteira. Passavam-se por água os copos de pé alto e os pratos de faiança branca com flores cor-de-rosa que só tinham ordem de sair do armário em dias festivos, mas que ainda assim tinham mais sorte que a toalha. Os talheres de festa saíam da lata verde-menta com uma imagem já comida pela ferrugem.
Só mesmo em cima da hora é que o teu avô ia para a cozinha fazer a mistela dele, com batatas esmagadas, bacalhau desfiado e folhas de louro. 
E sentávamo-nos todos à mesa, com o telejornal em pano de fundo (vês, também eu tinha o mesmo problema que tu, o meu pai também queria ver notícias à hora do jantar). Depois é que vinham as sobremesas, e eu sempre a contar os minutos que faltavam até ao dia seguinte para abrir os presentes. Quando tinha a tua idade não era o Pai Natal que os trazia, era o Menino Jesus, dizia-me a tua avó, mas eu sabia que não era verdade porque era eu que ia com ela comprá-los. E já na altura achava estranho que um bebé tivesse forças para pegar numa boneca com o dobro do tamanho dele. Os chocolates não eram como os de hoje, eram em forma de bonecos, mas enquanto os outros miúdos só queriam os pais natais, eu gostava era das violas e das garrafas de champanhe. Se não houvesse violas e garrafas de chocolate, o Natal não era a mesma coisa.
Podia ser só uma noite num ano, mas como vês, era uma noite inesquecível.