Feuerbach

Não sei porquê hoje lembrei-me de Feuerbach, e se acreditasse no além ou em algo do género diria que se calhar foi o tipo a mandar-me uma mensagem qualquer, porque faz hoje precisamente 204 anos que ele nasceu, enfim, a outra diz que não há coincidências mas acredito que sim, aliás, é das poucas coisas em que acredito, prefiro pensar assim do que submeter-me à ideia de que não passamos de uns actorezinhos patéticos a tentar improvisar os acontecimentos da nossa vida quando na verdade está tudo previamente escrito como no Truman Show e como se todos fôssemos Truman Burbanks e o tipo de lá de cima o maior dos realizadores de cinema, mas pronto, acabou o intervalo, de volta a Feuerbach recordo-me que a par de Kierkegaard e de Hegel foi um dos autores que mais gostei de estudar apesar de ter sido muito superficialmente, e embora não goste de me recorrer ao pensamento dos outros — prefiro o meu, sou coelho, não ovelha para seguir o pastor ou estar no meio do rebanho —, Feuerbach defendia que Deus era a projecção exterior do desejo de perfeição do homem, e tenho de dar a mão, perdão, a pata à palmatória e concordar com ele, não fomos criados por um deus qualquer mas nós é que criámos Deus, quando não sabemos a origem de alguma inventamo-la, um pouco como o mito de os bebés serem trazidos pela cegonha, e ainda me lembro do ar entre confuso e furibundo da minha mãe quando tentou convencer-me de que a mulher tinha sido criada com uma costela do Adão e ao que lhe contestei «então se assim é porque é que são as mulheres a ter os filhos e não os homens?», poderia parecer demasiado para uma criança de sete ou oito anos mas nunca fui muito de acreditar em mitos, aprendi desde muito cedo que as prendas vinham das lojas e que não existia nem menino Jesus nem pai natal porque era eu quem as embrulhava, e nunca conseguiram convencer-me de que era por não havia papel de embrulho na Lapónia, enfim, o Feuerbach também se dedicou ao estudo do altruísmo e bem vistas as coisas o altruísmo, na sua verdadeira essência, é tão mito como a ideia de Deus, já que o fim último do altruísmo é a satisfação pessoal, podem muito bem dizer-me que «contribuo sempre para o Banco Alimentar contra a Fome e para a AMI e para a Sol e para a Abraço e para a Liga Portuguesa contra o Cancro porque são causas em que acredito», mas na realidade fazemo-lo unicamente para nos sentirmos bem connosco, e se compramos dois quilos de arroz para o Banco Alimentar é para apaziguar a nossa consciência pesada por termos gasto um valor equivalente num pacote de batatas fritas que só serve para nos engordar e nada mais, se damos dinheiro a uma organização, seja ela qual for, podemos argumentar que é por exemplo para comprar vacinas contra a malária, e isso é louvável, quem dera que todos contribuíssemos para tentar tornar o mundo um lugar melhor para se viver, estou para aqui a falar mas só não dou quando não posso, e bem haja às pessoas que dedicam a sua vida a ajudar os outros, aos médicos que abdicam dos ordenados milionários para irem para os países do terceiro mundo salvar vidas a troco de nada, a sul-africana que adopta crianças seropositivas para lhes proporcionar um final de vida digno, se acreditasse na existência de santos seriam esses a estar no altar, mas pronto, o que estava a tentar dizer é que, no fundo, o altruísmo é a maior forma de egoísmo, não nos iludamos, e quanto mais nos proclamamos altruístas mais egoístas somos, mais pensamos que o mundo gira à nossa volta, e quantos mais pacotes de arroz comprarmos melhor iremos sentir-nos, mas pronto, o Feuerbach defendia que fomos nós a criar a ideia de Deus como a personificação do ideal de perfeição, acho que tem toda a razão, mas qual é essa ideia de perfeição, a de um ser vingativo que nos castiga com a sua ira quando não lhe fazemos a vontade, ou de um ser indiferente ao sofrimento dos outros, que é capaz de assistir impávido e sereno à agonia de milhões de pessoas, que permite que se mate barbaramente – e até mesmo com requintes de malvadez — em seu nome? Se Deus é assim tão perfeito, como é possível que tenha cometido tantos erros, sendo certo e sabido que errar é humano?
28/Julho/2008

A ouvir: Luz Vaga, Mesa & Rui Reininho

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