Pequenas insignificâncias que fazem toda a diferença

Há dias um texto do José Luís Peixoto publicado no Jornal de Letras sobre a água fez-me ruminar na importância dos pequenos detalhes que marcam a diferença (diga-se de passagem que ele tem toda a razão, se faltar um orador numa conferência ou palestra, paciência, é da maneira que os outros falam mais, mas se faltarem as garrafas de água em cima da mesa é quase o fim do mundo, toda a gente começa a remexer-se nas cadeiras), e pensei em como a nossa vida seria mais complicada se não houvesse, por exemplo, aquelas coisinhas de plástico à volta das pontas dos atacadores do sapato, como seria difícil enfiar os atacadores naqueles buraquinhos, que por sua vez também têm uma coisa maravilhosa que também nos facilita e muito a vida, os ilhós, como iríamos enfiar os atacadores — revestidos a plástico, claro está! — nos buracos sem os ilhós, e como não agradecer aos inventores dos post-it pela sua maravilhosa invenção, como seria possível deixarmos recados ou pequenos lembretes sem esses papelinhos amarelos (ou de outras cores, evidentemente, agora há-os de todas as cores e feitios), e viva as fraldas descartáveis, porque não consigo imaginar a minha vida se tivesse de lavar fraldas todos os dias e passá-las a ferro, sei que os ambientalistas odeiam essas coisas que ficam durante 500 anos a poluir a Terra, também tenho pena do planeta mas infelizmente ainda não ganhei o Euromilhões para me poder dar ao luxo de ter todas as preocupações ambientais que se devem ter, gostaria de ter em casa vários caixotes do lixo para poder separar o lixo convenientemente mas como a casa é pequena não dá, e graças a todos os santinhos que existem carregadores de pilhas para abastecer os brinquedos do bebé e o leitor de MP3 sem o qual se torna quase impossível andar nos transportes públicos, e ainda assim temos de levar com a música dos outros porque há pessoas incivilizadas que não sabem quem foi Kant nem que a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros, enfim, há muitas pequenas coisas que parecem insignificantes e às quais não damos a menor importância mas que fazem toda a diferença, como aquelas pequenas letrinhas nos contratos das seguradoras e dos empréstimos bancários que só damos por elas quando os problemas surgem, e é preciso estarmos atentos a todas as palavrinhas e aos seus significados, um só deslize pode arruinar tudo, basta uma palavra mal interpretada para haver consequências imprevisíveis, quantas guerras começaram por causa de mal-entendidos, já para não falar das religiões, oh céus, a história das 70 huris de grandes olhos castanhos (não há olhos mais belos do que os castanhos, mas isso fica para outra conversa) no paraíso à espera dos mártires, e zás, levam tudo à letra e depois lá vão eles mandar-se pelos ares para irem mais depressa para o paraíso, não pensam sequer no que irão fazer depois de fazerem as 70 virgens deixarem de o ser, a eternidade é muito longa e a virgindade é daquelas coisas que, depois de se perder, já não se volta a recuperar, 70 virgens é muito pouco para toda a eternidade, e falando ainda de virgens, a história da Maria também está muito mal contada, porque no entender de alguns especialistas a palavra que estava nos textos sagrados quereria dizer «rapariga jovem» e foi mal traduzida para «virgem», e eis que uma das bases da religião cristã não passa afinal de um erro de tradução…
Realmente, há pequenas insignificâncias que fazem toda a diferença.

03/Março/2008

A ouvir: A Question of Lust, Depeche Mode

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