Já ninguém escreve cartas de amor

Já ninguém escreve cartas de amor, queixa-se o Mário Zambujal, mas não se escrevem de amor nem de coisa nenhuma a não ser que não sejam contas para pagar ou publicidade manhosa a tentar vender banha de cobra e água em pó aos incautos, e é curioso ver como antes havia tanta gente a escrever cartas e hoje limitamo-nos a um «tá td bem ctg? cmg tá td, bjs» por sms, o que seria de As Ligações Perigosas enquanto obra literária se, em vez de uma carta, a marquesa tivesse mandado uma sms ao Valmont a dizer algo do género «hj vais pinar a gaja dps paxa cá pa contar cm foi», e que dizer das cartas da Mariana Alcoforado, ou das do Abelardo à Heloísa, do Pessoa à Ofélia, e tantas outras obras da literatura que se teriam perdido, ou o Simão de O Amor de Perdição a mandar e-mails à Teresa, é engraçado ver o grande paradoxo dos nossos dias, quantos mais meios temos para comunicar mais parcos somos nas palavras e menos comunicamos uns com os outros, trocamos piadas e inutilidades por e-mail mas não somos capazes de perguntar à senhora grávida da frutaria quando é que nasce o bebé, ligamo-nos em rede no hi5 e no myspace e no orkurt e noutras coisas do género e contactamos pessoas que nunca vimos nem nunca veremos à nossa frente, mas somos incapazes de coisas tão simples como perguntar à colega que está na secretária ao nosso lado se a mãe dela está melhor da gripe, usamos a Internet para adquirir um aparelhometro que nem sabemos para que serve mas ficamos atrapalhados quando precisamos de comprar um selo dos correios para meter num envelope qualquer, e acho que se os correios ainda não foram à falência e continuam a existir é porque as transacções são cada vez mais impessoais, é mais fácil surfar na net à procura daquilo que queremos ou que achamos que precisamos do que mexermos o rabo para ir in loco satisfazer as nossas necessidades, para quê ir a uma livraria quando posso comprar livros com dois cliques, se agora nem o desconto dos 10% nos dão, e com isto os únicos músculos que se desenvolvem devem ser os dos dedos das mãos, e voltando às cartas agora ainda vão sendo publicadas em livro as missivas trocadas entre nomes respeitáveis da literatura, entre a Sophia e o Jorge de Sena, entre o Houelebecq e o Henri-Lévy, por exemplo, mas daqui a uns anos duvido que haja alguma coisa desse tipo, é pena, hoje os escritores comunicam entre si através de e-mails ou de blogues ou de redes sociais e não é como dantes, com aquelas cartas manuscritas como as que Júlio Dinis escrevia quando estava na Madeira a tentar tratar-se da tuberculose que o matou e a dizer «Hoje está a chover» para no dia seguinte escrever mais uma carta a dizer «Ontem choveu mas hoje já está sol», ou as muitas de muitos escritores que estão na Biblioteca Nacional ou na Torre do Tombo, e dá-me uma certa pena que este hábito se tenha perdido porque há cartas mesmo belas, o Pessoa dizia que todas as cartas de amor são ridículas mas eu não acho, ou se calhar talvez seja o meu conceito de ridículo que está ainda mais desactualizado do que as cartas.

22/Outubro/2008
A ouvir: Love Should, Moby

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