O meu fogãozinho de brincar

Em criança tinha um fogãozinho de brincar onde aprendi a ver as horas sem a ajuda de ninguém, e é estranho aprender as horas num fogão de brincar de plástico que tinha um mostrador de relógio pintado na tampa e que marcava eternamente meio dia e um quarto, deveria ter aprendido as horas num relógio a sério mas não, não é que não tivesse relógio, faltava era quem me ensinasse as horas, éramos muitos numa casa pequena e andava sempre toda a gente a correr de um lado para o outro não se lembrando da criança que por ali andava a vaguear, uma intrusa num mundo só de crescidos com assuntos de crescidos para se preocupar, de maneira que a criança teve sempre de se amanhar sozinha, brincava sozinha com o fogãozinho de brincar em plástico que trazia duas panelinhas do tamanho de rolhas de garrafas de espumante, e com o trem de cozinha com panelas brancas e tampas vermelhas com asas pretas que trazia uma concha e uma escumadeira e uma colher grande iguais às da minha mãe, e depois de fingir que cozinhava no trem de cozinha passava a sopa com a varinha mágica branca com a lâmina de plástico azul e metia a comida no frigorífico do tamanho de uma caixa de sapatos que até tinha uma lâmpada minúscula que acendia de cada vez que lhe abria a porta e a loiça a lavar numa máquina azul com uma porta transparente que funcionava bem até ter metido água lá para dentro, e depois da loiça lavada metia-a num armário que o meu pai tinha feito, e a seguir ia tratar das roupas, pois claro, despia as bonecas e passava-lhes a roupa a ferro — sim, porque de onde venho «engomar» significa colocar goma na roupa — para depois arrumar a roupa num roupeiro de madeira com duas portas de correr e uma gaveta que a minha prima me tinha dado, e só depois disso é que a boneca se sentava na cadeira de madeira branca a descansar, mas não por muito tempo, tinha de se levantar logo a seguir porque era preciso ir ao cabeleireiro por rolos de plástico cor-de-rosa no cabelo e secá-lo com um secador a pilhas também ele cor-de-rosa, nessa altura a boneca ainda não se preocupava com pelos nas pernas e podia usar minissaia à vontade e saltos altos (não os do Almodóvar, nessa altura ainda não sabia sequer que ele existia), mas a certa altura fartava-me de todos aqueles afazeres e abandonava a boneca e as panelas e o fogãozinho e o roupeiro com portas de correr e a cadeira de madeira branca com a boneca lá sentada e ia fazer outra coisa como cortar os bigodes ao gato com a tesoura, ou ler o livro da Alice no País das Maravilhas que tinha trazido da biblioteca municipal, mas agora não posso fazer isso, agora o fogãozinho não é de brincar, é a sério, e não basta olhar para uma panelinha de plástico vermelho do tamanho de uma rolha de garrafa de espumante e imaginar que há arroz de polvo lá dentro, é preciso picar a cebola e fazer o refogado e enfiar o polvo aos bocados para dentro da panela e depois o tomate e o sal e a pimenta e água e no fim o arroz, e é preciso trabalhar para ter dinheiro para comprar o arroz e o polvo e o resto das coisas, e depois do arroz feito e comido enfiar a loiça na máquina de lavar que é agora branca e funciona a electricidade em vez de pilhas (disseram-me que havia máquinas de lavar a gás, será verdade?), e no meio do vaivém e corropio em que a minha existência se transformou sinto uma certa inveja daquela criança que tinha um fogãozinho de brincar e que cortava os bigodes ao gato e que punha rolos cor-de-rosa no cabelo das bonecas e que dava biberões de leite aos pobres coelhinhos órfãos e que fazia todas aquelas coisas que o peter pan que existe latente dentro de nós anseia por fazer.

21/Maio/2008



A ouvir: Forever Young, Alphaville

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