Little sister

Ser-se a mais nova em casa costuma ser tramado. Quando há problemas a culpa costuma ser da mais nova: foi ela que deixou a porta aberta para o gato fugir, ou foi ela que se esqueceu de meter a gata na rua e o bicho enervou-se de tal maneira que desfez a árvore de Natal, foi ela que partiu a estatueta de porcelana que a mãe recebeu no dia da mãe - e por mais que tivesse jurado a pés juntos que aquela coisa já estava escaqueirada no chão, nunca ninguém acreditou em mim e aos olhos de todos era eu a assassina de pássaros de loiça; foi ela que desarrumou tudo, eu tinha acabado de arrumar a sala e ela veio cá e espalhou os brinquedos todos, por que raio é que ela não vai brincar lá para fora, raios partam. E os mais novos herdam sempre a roupa dos mais velhos, o que é uma grande seca porque assim quase nunca se tem coisas novas a quem possamos chamar nossas, e embora não desse propriamente para herdar a roupa das minhas irmãs doze e dezasseis anos mais velhas que eu, a verdade é que passei anos a galar o blusão de ganga do meu irmão Carlos, que depois usei até à faculdade e até o pobre blusão se desfazer literalmente, com os punhos completamente rotos do uso, mas que se dane, na altura era giro e eu achava piada a usar ganga esburacada. E normalmente são os irmãos mais novos que acabam por se encarregar de fazer o trabalhinho sujo dos mais velhos: ir comprar papel vegetal para depois elas passarem o cabelo a ferro, estendido na tábua de engomar; ir à loja do Meco Moleiro comprar uma embalagem de pensos da Modess, aquelas compressas higiénicas com um cheiro que ainda hoje me vem à memória, umas embalagens de plástico branco e cor-de-rosa que elas se tentavam esquivar de ir comprar por vergonha de o Meco Moleiro perceber que elas estavam com a ti-maria e vai daí usarem a inocente insuspeita, ou então os maços de SG-Filtro para o mais velho, numa altura em que as crianças ainda podiam comprar tabaco - não digas nada à mãe, faz de conta que é para o pai, embora fosse do conhecimento de todos que o pai fumava Português Suave porque era ali mesmo que se compravam os volumes de tabaco juntamente com a despesa que a filha do Meco Moleiro acarretava rua abaixo numa espécie de carrinho de mão -, ou então as peregrinações semanais a casa da Rosita por causa dos discos do Julio Iglesias, a Rosita dos enormes olhos pretos e brilhantes e que parecia uma cigana com a pele cor de azeitona e o cabelo preto e lustroso a dar-lhe pelo rabo, a Rosa que um cancro acabou por colher ainda em flor...

E tudo isto a propósito de uma tarde em que o cérebro já estava de tal maneira frito de tanto trabalho que só meu deu para ouvir Hey do Julio Iglesias no YouTube.