Muito à frente

Afinal o grupo de estudo que pretende escortanhar a rede de transportes públicos da área metropolitana de Lisboa mais ou menos da mesma maneira que um miúdo de três anos agarra numa tesoura e numa revista da mãe e a começa a recortar, assim à toa e sem saber muito bem o que está a fazer, até que tem algumas ideias para relançar a economia nacional, porque sem transportes públicos, as pessoas têm de andar de transporte particular, de carro ou de mota ou de carroça ou trotinete ou bicicleta ou até mesmo segway, porque não, então descer as colinas ali na zona do Castelo de segway seria uma descida e tanto, só adrenalina, ou então com o fim das carreiras de barcos o pessoal vai mas é a nado para a outra margem, poupam no ginásio e faz bem à saúde, o que significa menos gastos para o SNS, mas dizia eu que a ideia é fazer a malta andar de transportes particulares, assim é da maneira que o estado ganha mais tanto no ISPP como no IVA (esta é outra muito gira, cobrar-se imposto do imposto, que bonito, nem o xerife de Nottingham se lembrou de uma desta, estão a ver), e assim também se incentiva a venda de carros e motas e afins, e com o desgaste as oficinas de reparação auto e as vendas de pneus também terão direito a uma fatia do bolo, o que é preciso é pensar antecipadamente, manter os olhos postos no futuro, e com menos transportes públicos reduz-se a fuga ao fisco dos carteiristas que não pagam IRS dos gamanços, digam lá se não é de génio, ou então, aqueles que não podem usar o transporte particular andam à pata, querem melhor incentivo do que este para a produção de calçado nacional — S. João da Madeira e Felgueiras, cheguem-se à frente se faz favor —, e quanto àquele pessoal que se queixa que depois não pode voltar para casa porque sai demasiado tarde do trabalho também não têm razão para se queixar, porque como vão ficar sem emprego vão deixar de ter esse problema, ou então é uma antecipação para o aumento do horário de trabalho, se a pessoa tiver de trabalhar 18 horas por dia vai a casa fazer o quê, mais vale vender a casa e assim nem tem de se preocupar mais com o aumento das taxas de juro e as dívidas ao banco e o aumento do IMI e essas coisas todas, enfim, bem vistas as coisas, o grupo de trabalho que anda a escortanhar a rede de transportes públicos está mas é muito à frente…





A ouvir: When they come for me, Linkin Park

Foi assim que aconteceu

Queres saber como foi, meu amor? Eu conto-te. Primeiro tiveram de me espetar a agulha para meter o soro e não estavam a conseguir, e só ao fim de mais de uma hora e depois de me terem deixado a mão toda esburacada é que lá conseguiram enfiá-la, estás a ver este sítio aqui, este pontinho escuro na parte de dentro do pulso?, foi aqui, e a seguir levaram-me para outro sítio, e quando lá entrei fui tomada por um medo irracional — acho que medo irracional é um pleonasmo, todos os medos são irracionais — , talvez tivesse tido do frio que fazia lá dentro do bloco operatório, mas arrepiei-me toda e baixei a cabeça e disse baixinho para ninguém ouvir «tenho medo», e depois espetaram-me outra agulha, não te vou dizer aonde para não te assustares, sabes, amor, não te preocupes, era para não me doer quando estivessem a fazer a cesariana, e a partir daí começou tudo a ficar difuso, foi como se uma névoa me tivesse envolvido, ouvia as vozes mas as vozes eram abafadas pelas máscaras e não distinguia bem o que estavam a dizer, e virei os olhos para o aparelho ao meu lado que media a tensão arterial e ia vendo os números a descerem, a descerem, a descerem, e quando olhei e vi que marcava 59/38 (creio que nunca me irei esquecer desses dois pares de números e do medo que senti ao vê-los) assustei-me e a partir desse segundo começaram a subir outra vez, e foi quando me disseram que te ia ver e te levantaram por cima do pano verde, sabes, amor, da primeira vez que te vi não estavas como os recém-nascidos costumam estar cheios de sangue e líquido e gordura, não, estavas limpo, limpo e cinzento, e a tua cor encheu-me de terror porque durante uma fracção de milésimo de segundo pensei o pior, mas então tu mexeste os olhinhos e vi que afinal estava tudo bem e senti as lágrimas a escorrerem-me dos olhos para a cara ao ver aqueles dois pontinhos de luz, e a partir daí já mais nada me importou porque às 22 horas e 27 minutos do dia 31 de Outubro de 2006 passei a ter dois sóis na minha vida.

Da importância de um caixote feio

Não sei porquê mas hoje lembrei-me da velha televisão a preto-e-branco da Blaupunkt, um caixote feio que nos meus quatro anitos parecia enorme, com botões em que tínhamos de carregar de cada vez que queríamos mudar do 1º para o 2º canal, exacto, é verdade, na altura não tínhamos aquele problema do Springsteen em 57 channels and nothing on, era o 1 ou o 2, mais nada, e é curioso que só me lembre do último dia em que essa Blaupunkt esteve lá em casa, recordo-me de estar a dar o último episódio de uma telenovela qualquer chamada Pai não sei das quantas, em que havia uma tal de Maria Preta que trabalhava num cabaré e eu via aquelas lantejoulas e penas e plumas e imaginava como seria se a televisão as mostrasse a cores, que pena ela só vir no dia seguinte, menos vinte e quatro horas antes e eu teria visto todas aquelas cores, que chatice, assim só vi o jegue do Nezinho ataviado com fraldas e o prefeito Odorico Paraguaçu a bradar «poooovo dji Sucupira», e essa televisão a cores era uma Oliva, produzida na altura em que aquilo ainda não era uma ruína pasto para agarrados e onde se faziam televisões, torneiras e máquinas de costura, e também tinha botões para mudar do 1º para o 2º canal, comandos, o que é isso, enfim, a Blaupunkt era uma espécie de símbolo da família, porque segundo os anais da história familiar essa televisão impediu que o meu pai emigrasse para França — o argumento para os meus irmãos não estrebucharem era que ia ganhar dinheiro para comprar uma televisão, tida como a oitava maravilha do mundo para os miúdos pequenos que eram na altura, e vai a minha mãe cala-se muito caladinha e pela primeira e única vez na vida comprou uma coisa a prestações e mandou entregá-la lá em casa para gáudio da criançada, estás a ver, já não tens de ir para França para se comprar uma televisão, deixando-o sem argumentos, enfim, é curioso pensar como é que um caixote feio como aquele tinha tanta importância na vida das pessoas, com toda a gente a reunir-se em volta do aparelho observando um silêncio religioso, chiu, está a dar a telenovela, cala-te, deixa-me ouvir as notícias, quando hoje em dia a televisão serve muitas vezes de ruído de fundo, de companhia, quase como o Chico, o papagaio da minha madrinha que morreu de ataque cardíaco durante um mini-tufão que destruiu a marquise onde a gaiola dele estava, que não dizia nada de jeito mas estava ali, presente. O mais engraçado e irónico disto é que me lembro perfeitamente da Maria Preta e do Odorico Paraguaçu de há trinta anos, mas não me recordo de uma única imagem que tenha visto ontem na televisão (Samsung, já agora).

Little sister

Ser-se a mais nova em casa costuma ser tramado. Quando há problemas a culpa costuma ser da mais nova: foi ela que deixou a porta aberta para o gato fugir, ou foi ela que se esqueceu de meter a gata na rua e o bicho enervou-se de tal maneira que desfez a árvore de Natal, foi ela que partiu a estatueta de porcelana que a mãe recebeu no dia da mãe - e por mais que tivesse jurado a pés juntos que aquela coisa já estava escaqueirada no chão, nunca ninguém acreditou em mim e aos olhos de todos era eu a assassina de pássaros de loiça; foi ela que desarrumou tudo, eu tinha acabado de arrumar a sala e ela veio cá e espalhou os brinquedos todos, por que raio é que ela não vai brincar lá para fora, raios partam. E os mais novos herdam sempre a roupa dos mais velhos, o que é uma grande seca porque assim quase nunca se tem coisas novas a quem possamos chamar nossas, e embora não desse propriamente para herdar a roupa das minhas irmãs doze e dezasseis anos mais velhas que eu, a verdade é que passei anos a galar o blusão de ganga do meu irmão Carlos, que depois usei até à faculdade e até o pobre blusão se desfazer literalmente, com os punhos completamente rotos do uso, mas que se dane, na altura era giro e eu achava piada a usar ganga esburacada. E normalmente são os irmãos mais novos que acabam por se encarregar de fazer o trabalhinho sujo dos mais velhos: ir comprar papel vegetal para depois elas passarem o cabelo a ferro, estendido na tábua de engomar; ir à loja do Meco Moleiro comprar uma embalagem de pensos da Modess, aquelas compressas higiénicas com um cheiro que ainda hoje me vem à memória, umas embalagens de plástico branco e cor-de-rosa que elas se tentavam esquivar de ir comprar por vergonha de o Meco Moleiro perceber que elas estavam com a ti-maria e vai daí usarem a inocente insuspeita, ou então os maços de SG-Filtro para o mais velho, numa altura em que as crianças ainda podiam comprar tabaco - não digas nada à mãe, faz de conta que é para o pai, embora fosse do conhecimento de todos que o pai fumava Português Suave porque era ali mesmo que se compravam os volumes de tabaco juntamente com a despesa que a filha do Meco Moleiro acarretava rua abaixo numa espécie de carrinho de mão -, ou então as peregrinações semanais a casa da Rosita por causa dos discos do Julio Iglesias, a Rosita dos enormes olhos pretos e brilhantes e que parecia uma cigana com a pele cor de azeitona e o cabelo preto e lustroso a dar-lhe pelo rabo, a Rosa que um cancro acabou por colher ainda em flor...

E tudo isto a propósito de uma tarde em que o cérebro já estava de tal maneira frito de tanto trabalho que só meu deu para ouvir Hey do Julio Iglesias no YouTube.

Ai que tristeza, coitadinha

Não, não é a música d’ A Caruma, mas sim a Amy Winehouse que foi fazer tijolo este fim-de-semana, para grande pena dos fãs. É sempre triste quando uma pessoa de vinte e sete anos morre, seja ela cantora ou mulher a dias, mas confesso que estou farta da versão da coitadinha. Diz a minha mãe que «o mais mau é começar» (sic) e tem toda a razão. Libertarmo-nos de um vício é sempre difícil, sendo que o grau de dificuldade depende de uma enormidade de factores, desde o tempo de duração à força de vontade que a pessoa tem de se livrar das grilhetas. No entanto, ninguém cai num vício por obrigação — todos temos SEMPRE a possibilidade de dizer que não. É difícil a um alcoólico inveterado dizer que não a um copo — difícil, não, impossível, admito —, mas até chegar a alcoólico inveterado teve enésimas oportunidades de dizer «não, já bebi que chegasse», ou «não, obrigado, não quero», e o mesmo vale para as drogas, o jogo, ou o que quer que seja. É que eu duvido que alguém tenha amarrado a coitadinha da Amy a uma marquesa e injectado heroína repetidamente, ou que lhe tenham enfiado um funil pelas goelas como fazem aos gansos e despejado álcool em quantidades industriais. Claro que há determinadas circunstâncias que podem conduzir as pessoas ao vício — não é só o doutor House, uma personagem de ficção, que se vicia em Vicodin para mitigar as dores atrozes, há muitos casos reais de pessoas que acabam por se viciar em analgésicos. Mas regra geral, é sempre a pessoa a dar o primeiro passo, a aceitar aquela passa no charro, a linhazita de coca, a pastilha para aguentar a noite toda a dançar, e como é hábito, «a ocasião faz o ladrão». Está ali disponível, porque não? É só uma vez, porque não? Não faz mal aos outros, por que razão haveria de me fazer a mim? Se os outros conseguem, porque não eu?
Por isso é que esta história da coitadinha da menina que bateu a bota por causa de tanta porcaria que meteu para dentro não me choca. Tinha talento, é certo, mas e daí? O talento é uma desculpa para o abuso de drogas, ou, mais grave ainda, será que ser drogado é condição sine qua non para se ser músico? E depois há a questão do mito dos 27: o grupo de músicos talentosos que foram desta para melhor com vinte e sete anos, o Brian Jones, o Jim Morrison, a Janis Joplin, o Kurt Cobain, o Jimi Hendrix, e outros que não fazem parte do clube mas que desapareceram igualmente de forma trágica — o Hutchence e o Jeff Buckley, só para citar dois deles.
Não foi inesperado. As figuras cada vez mais tristes sucediam-se, e à tentativa dos pais desesperados de a internarem para desintoxicação foi ridicularizada com o seu «they tried to put me on rehab, but I said no, no, no». Há muitos viciados — não apenas toxicodependentes, note-se — que gostariam de ter uma oportunidade de se livrarem do vício, e nunca a têm, acabando por morrer com agulhas espetadas nos braços ou com o fígado rebentado do álcool ou com uma embalagem de comprimidos no bucho por terem contraído demasiadas dívidas com o jogo e acharem que a única saída é o suicídio, por exemplo. Mas há quem procure ajuda. Há quem se esforce. Há quem peça ajuda. Há quem tenha esperança numa saída.

E há aqueles que não querem. Há aqueles que dizem «tentaram levar-me para a desintoxicação, mas eu disse não, não, não». Deu uma música gira, de facto. E o «coitadinha» também.

Perigo azul



O alerta surgiu de França: os Estrunfes (não, para mim hão-de continuar a ser Estrunfes e não Smurfs, com ou sem filme) vivem num regime estalinista porque, entre outras coisas, moram em casas iguais(nos subúrbios americanos também assim é, e daí?), vestem-se de igual (e na altura ainda nem sequer havia a Inditex do senhor Ortega, senão aí é que haveria de ser bonito), e são liderados por um fulano vestido de vermelho e barbas brancas (a imagem que tenho do Estaline é tinha bigode e não barba, e vestia-se de verde-tropa), e que faziam das tripas coração para escapar às garras do maléfico Gargamel e do seu bichano Azrael, que no entender do tal sociólogo são claramente referências ao judaísmo, não só na semelhança fonética como no aspecto físico —como se todos os judeus tivessem o nariz grande e batatudo, queixo proeminente e sobrancelhas grossas — ou seja, além de estalinistas os bonequinhos azuis são anti-semitas, e aqui eu acrescentaria mais dois graves problemas, um deles o facto de viverem em cogumelos — hello, serei só eu a ver aqui o perigo do incentivo ao consumo dos cogumelos mágicos, daqueles que dão uma trip ainda maior do que a da Alice quando andou a passear no país das Maravilhas, ou que dão uma moca maior do que a da Bela Adormecida (cá para mim a gaja enfrascou-se foi em Xanax e depois meteu as culpas na bruxa, how convenient…) —, enfim, estava eu a falar dos malvados dos Estrunfes, já me ia dispersando como sempre, e o dito sociólogo também se esqueceu de referir algo muito importante, é que só lá existe um único Estrunfe do sexo feminino, ou seja, o senhor Peyo não cumpriu as quotas de representatividade dos sexos, teria de ter inventado mais estrunfinas, e já agora porquê loira, porque não ruiva ou morena, raios partam, já não basta os homens preferirem as loiras, que os Estrunfes também, ainda por cima uma única mulher para tantos homens, aonde é que já se viu, que promiscuidade, que badalhoquice, enfim, pobres das criancinhas incautas que estão a receber todas estas mensagens subliminares, e sorte que o senhor Peyo não é português, senão haveria alguém que o acusaria de ter sido subornado pelo Pinto da Costa para os pintar de azul-FCP…

Esperteza saloia # 2

Será que com relógios de borracha o tempo passaria a ser elástico?

Crueldade intolerável




Ok, admito que os Três Porquinhos tenham agido em legítima defesa ao limpar o sebo ao Lobo Mau - afinal, ele queria comê-los - mas era preciso ser terem-no cozido numa panela de água a ferver? Não podiam simplesmente ter-lhe dado uma paulada na cabeça ou usado um taser como aqueles da prisão de Paços de Ferreira? Agora cozer o bicho vivo? Eh pá, não havia necessidade, isso só se faz é às lagostas...

Francamente, senhor Perrault!

Onde é que o senhor Perrault teria a cabeça para fazer a pobre Cinderela usar sapatos de cristal? Mas será que não pensou que a desgraçada ia ficar com os pés todos escortanhados? Já não basta sacrificar os pés aos saltos altos e às dores nas costas e aos joanetes, como ainda por cima, em vez de um cabedal macio vindo de uma bonita vaquinha de olhos mansos a comer ervinhas verdes, o diabo dos sapatos tinham de ser de cristal? Ó Perrault, imaginas o que é ter de dançar com o Príncipe durante horas a fio com os pés metidos dentro de vidros? Vê lá se escreves a história como deve ser e pões a garota a usar uns belos Louboutins ou uns Jimmy Choos, pode ser? A malta agradece.

Flower power


Gosto de narcisos porque sim. São amarelos, vivos, bonitos e solitários. Gosto de flores solitárias que se erguem altivas a exibirem a sua cor brilhante como uma mancha de vida. Do amarelo-vivo dos narcisos, uma mancha de sol radioso, do perfume doce e a seda das pétalas, passar a ponta do dedo pelo rebordo dentado do cálice, de ver o caule elegante e esguio orgulhosamente só a elevar a sua coroa gloriosa para os céus.

Gosto de túlipas. Não importa de que cor, se bem que as que mais me agradam são as brancas. Nunca estive na Holanda, a terra das túlipas, mas há uma terrinha onde estive há bem pouco tempo que espalhou túlipas em todas as muitas rotundas que por lá há. Vermelhas e amarelas, formam manchas de cor incongruentes e deslocadas no meio do asfalto. Gostava que houvesse túlipas pretas. E azuis. Talvez um dia haja.
Gosto de violetas. Roxas, pequeninas, frágeis e delicadas. As que apanhava em pequena tinham caules que mais pareciam linhas, e que começavam a retorcer-se como uma bicha-cadela pouco depois de terem sido colhidas.

Gosto de miosótis. Gosto dos minúsculos pontinhos de um azul-celeste por entre folhagem repolhuda. Em criança diziam-me que se chamavam olhinhos-de-nossa-senhora, mas sempre me recusei a usar essa designação: o anúncio das latas de tinta dizia que eram miosótis, e talvez tenha sido essa a minha primeira tentativa de rejeição dos dogmas católicos que me tentavam impor, como os trovões serem os ralhetes de Jesus ou o facto de se comer carne na Sexta-feira Santa significar um bilhete só de ida para o inferno.
Há muitos anos que não vejo miosótis. É pena.


Gosto de lírios.

Não gosto de dálias, as pétalas fazem-me lembrar cascas de cebola ressequidas.

Gosto de hortênsias. Gostaria de ter hortênsias em casa, mas tenho tanto jeito para cuidar de plantas que nas minhas mãos nem os cactos sobrevivem.
Gosto de nenúfares.

Não gosto de cravos nem cravinas, não por causa do 25 de Abril, mas porque fazem-me sempre lembrar cemitérios. A mãe de um miúdo que morreu atropelado e que andava na minha escolha tinha sempre cravos brancos no túmulo do filho. Têm um perfume enjoativo, que me parece cheirar a mortos.

Gosto de rosas. Há-as cor de sangue, de um vermelho-escuro aveludado, cor de chá, brancas e de uma infinidade de outras cores. À semelhança das túlipas, também não existem rosas pretas. Pergunto-me por que razão não existem flores pretas. Talvez um dia haja.


Gosto de amores-perfeitos. Pequeninos e aveludados, com gradações de cor nas pétalas. Fazem-me lembrar máscaras de carnaval. Não sei dizer porquê, mas parecem-me sempre que têm dois olhos ali no meio a espreitar.

Gosto de malmequeres amarelos, dos silvestres. Em criança costumava agarrar numa linha branca e numa agulha para fazer colares com eles, uma imitação caseira e barata dos colares de flores do Havai. E arrancar-lhes as pétalas uma a uma, mal-me-quer, bem-me-quer, e na maior parte das vezes o mal ganhava.

Gosto das camomilas e de umas florezinhas parecidas com as camomilas e das quais nunca soube o nome, e que costumava meter numa frigideira de brincar a fingir que eram ovos estrelados, e de lhes arrancar as pétalas brancas fininhas para fazer de conta que era coco ralado para decorar os bolos de terra chocolate.

Gosto de ter flores em casa. Gosto de ver aquela mancha viva de vida ali na jarra, embora estejam mortas a partir do momento em que são colhidas. Amarelas. Vermelhas. Roxas. Cor-de-rosa. Cor de laranja. Lilases. Brancas. Azuis. É indiferente. Gosto de flores.

(Só para lembrar que a Primavera está quase a chegar.)

«Não têm pão? Que comam bolo!»

A frase foi dita por Maria Antonieta (não, desenganem-se, ela não falou em croissants, apesar de ter sido ela, uma austríaca, a levar para França aquilo que é hoje considerado um ex libris gaulês), e ontem ao deambular pelos corredores de um Continente lembrei-me dela, já que quis armar-me em saudável e comprar pão escuro e com sementes, mas que raio de ideia a minha, em tempo de crise querer comer pão, onde é que isso já se viu, isso é coisa fina, dizia eu que queria comprar um pacote com um pão escuro e com sementes, até que olhei para a etiqueta do preço, uns insultuosos 1,99 €, e pensei «bolas, isto está caro» e pousei o pacote, e não teria pensado mais nisso se não tivesse olhado fortuitamente para a bancada em frente onde se alinhavam caixas e caixas de bolos embalados, fatias de bolo mármore a pingar gordura, bolos de arroz luzidios de margarina, e até pastéis de feijão em caixinhas de plástico com uma dúzia, e foram estes últimos que me indignaram de sobremaneira, porque custavam menos 50 cêntimos que um pão saudável feito com farinha não refinada, com farelo incluído e tudo, e umas sementinhas à mistura, e pensei que realmente a Maria Antonieta é que tinha razão, o melhor mesmo é comer bolo, que até é mais barato que o pão, mas ainda assim por descargo de consciência comecei a analisar os preços dos outros pães expostos, incluindo quatro fatias de um pão alentejano por 1,80 €, enfim, os bolos industriais a pingar gordura é que são bons, para quê dar à criancinha um pãozinho com manteiga ou fiambre ou queijo ou mesmo compota quando se pode dar-lhe um bolo, se dá menos trabalho pegar no dito e meter-lho à frente do que pegar no pão, agarrar numa faca e meter-lhe qualquer coisa lá dentro, que chatice ter de perder esses trinta segundos — o nosso ritmo de vida é cada vez mais acelerado mas acho melhor dispensar esses trinta segundos do que depois ir perder horas aos consultórios médicos em consultas de nutrição e tratamento da obesidade —, mas pronto, ainda pensei que o defeito seria do Continente, que atribuem preços estapafúrdios aos produtos a seu bel-prazer, mas ao chegar de manhã à cafetaria da empresa paguei por um simples pãozinho com manteiga apenas menos 5 cêntimos do que por uma bola com creme (com a entrada em vigor do Acordo Ortográfico vai ser assim que vou passar a designar as bolas-de-berlim que passarão a ser bolas de Berlim mesmo que sejam feitas em Alguidares de Baixo), e uma vez mais isto leva-me à Maria Antonieta e à sua declaração tão criticada que lhe custou a cabeça no sentido literal, «não têm pão? Que comam bolo!»

O poder de uma imagem

Há dias uma notícia acerca de um fotógrafo que se suicidou por causa de uma fotografia de uma criança em avançado estado de subnutrição que estava prestes a ser devorada por um abutre fez-me lembrar uma imagem que vi há uma série de anos na exposição World Press Photo no CCB, e que por vezes ainda me vem à mente quando fecho os olhos. Não me recordo qual o ano em que esteve a concurso, sei que foi algures na década de 90, nem muito menos o nome do fotógrafo. Sei que era a preto-e-branco, e que retratava uma mulher morta, com a cabeça inclinada para trás e com os olhos imobilizados e vítreos dos mortos, com uma criança pequena, nua, que chorava enquanto as moscas pousavam sobre o cadáver. Na imagem viam-se claramente os sulcos das lágrimas da criança em pranto, a descerem-lhe pela carinha abaixo, deixando-lhe rios sobre o pó e a terra que lhe sujavam o rostinho angustiado. A nitidez era tal que quase ouvia o choro da criança, os gritos dela pela mãe morta, o pânico e o terror que ela devia estar a sentir.
Recordo-me que fiquei ali sozinha, parada diante daquela demonstração de que o inferno existe, algures no meio de um conflito qualquer em África que dera origem a um genocídio — no Ruanda, Somália, Darfur, um qualquer, ali as guerras são tantas e tão sangrentas que por vezes baralho-as todas —, e tenho ideia de que demorei algum tempo até conseguir obrigar as minhas pernas a avançarem e a afastarem-me daquele horror. Fui-me arrastando ao longo do resto da exposição sem prestar grande atenção, com os olhos mortos da mulher cravados na minha mente.
Com os meus dezoito anos da altura, creio que não foi ver a morte que me impressionou daquela maneira — já tinha visto pessoas mortas antes, e de perto —, mas antes a espécie de imortalização da morte que aquela imagem constituía. O fotógrafo parecia ter conseguido prender o instante em que a vida se esvai, o momento em que os olhos se imobilizam, vítreos, como se fossem eles o indicador da vida, e não o bater do coração.Na altura era Verão, Setembro, talvez, mas recordo-me de ter tremido de frio. Saí do CCB, enfiei-me no eléctrico que ia para a Cruz Quebrada e assim que entrei no quarto sentei-me em cima da cama, a olhar para a parede em silêncio, tomada por um misto de náusea, horror, incredulidade e raiva, e um sem-número de emoções diferentes e contraditórias. Durante alguns dias a comida custou a passar na garganta, e com o tempo aquela sensação de agonia acabou por se esbater. Ainda assim, dificilmente irei esquecer aqueles olhos vítreos de papel que me fitavam, mortos.

Uma questão de mamas

O mais recente escândalo nos States — há muitos, um deles foi a Aguillera ter-se enganado a cantar o hino no Super Bowl, que horror, já não bastava o mamilo da outra ter saltado e agora este crime, enforque-se a criatura, queime-se e atire-se os restos mortais aos cães, uma pessoa que se engana a cantar o hino americano não merece respirar — estava eu a escrevinhar sobre outra coisa e perdi-me, já é hábito, e o escândalo é que uma das meninas de Glee, a Lea Michelle, apareceu com um graaaande decote na capa da Cosmopolitan (e isto depois de uma sessão para a GQ que já tinha feito correr muita tinta, enfim, a miúda não aprendeu e voltou a fazer das dela), e então os paizinhos ficaram muito ofendidos com o decote da rapariga (que por sinal é maior de idade), indignadíssimos por a revista mostrar que a angelical Rachel tem mamas, que horror, como é possível, uma menina que a minha filha de cinco aninhos ou o meu anjinho de oito anos idolatra tem mamas, ai que nojo, como é possível isso acontecer, que desgraça, eu aqui a tentar esconder as Hustler e as Playboys e as Penthouse e outras que tais junto com os dvds pornográficos e vai a Cosmopolitan mete as maminhas da Rachel na capa, para estarem expostas em todos os quiosques do país — bem, todos não, houve um no Texas que baniu a revista das bancas —, repito, como é possível mostrarem às criancinhas que a Rachel tem mamas, que ela é uma mulher, ídolo de criancinhas e adolescentes, sim, mas mulher, e caso não se saiba em terras do tio Sam, toda a gente tem mamas, até mesmo os homens, o que julgam?, um defeito evolutivo qualquer fez com que os homens continuassem a ter mamas mesmo que elas não lhes sirvam para nada — ups, estava a esquecer-me que em algumas partes dos States o criacionismo é lei e que o evolucionismo foi banido em muitas escolas —, enfim, estamos a falar de um país onde um grupo de cidadãos quis fazer com que as mães fossem proibidas de amamentar os filhos porque a amamentação causava prazer sexual às mãezinhas, grandes taradas, mas pronto, não tem mal deixar-se garotas de treze anos meterem implantes de silicone nas mamas e botox na cara para prevenir as rugas (esperem aí, não foi a Rachel que fez isso? Se não foi ela, foi uma outra qualquer do Glee), dizia eu que não faz mal miúdas de treze anos se recauchutarem todas, não faz mal as criancinhas verem vídeos musicais onde a única coisa que se vê são rabos a abanar, rabos, rabos e mais rabos, quanto maiores, melhor, mas uma mulher, maior de idade (Lea Michelle tem vinte e quatro anos), ser fotografada para a capa de uma revista com um vestido preto com um decote pronunciado já é um escândalo a nível mundial...
15/02/2011
A ouvir: Search and Destroy, 30 Seconds to Mars