O poder de uma imagem

Há dias uma notícia acerca de um fotógrafo que se suicidou por causa de uma fotografia de uma criança em avançado estado de subnutrição que estava prestes a ser devorada por um abutre fez-me lembrar uma imagem que vi há uma série de anos na exposição World Press Photo no CCB, e que por vezes ainda me vem à mente quando fecho os olhos. Não me recordo qual o ano em que esteve a concurso, sei que foi algures na década de 90, nem muito menos o nome do fotógrafo. Sei que era a preto-e-branco, e que retratava uma mulher morta, com a cabeça inclinada para trás e com os olhos imobilizados e vítreos dos mortos, com uma criança pequena, nua, que chorava enquanto as moscas pousavam sobre o cadáver. Na imagem viam-se claramente os sulcos das lágrimas da criança em pranto, a descerem-lhe pela carinha abaixo, deixando-lhe rios sobre o pó e a terra que lhe sujavam o rostinho angustiado. A nitidez era tal que quase ouvia o choro da criança, os gritos dela pela mãe morta, o pânico e o terror que ela devia estar a sentir.
Recordo-me que fiquei ali sozinha, parada diante daquela demonstração de que o inferno existe, algures no meio de um conflito qualquer em África que dera origem a um genocídio — no Ruanda, Somália, Darfur, um qualquer, ali as guerras são tantas e tão sangrentas que por vezes baralho-as todas —, e tenho ideia de que demorei algum tempo até conseguir obrigar as minhas pernas a avançarem e a afastarem-me daquele horror. Fui-me arrastando ao longo do resto da exposição sem prestar grande atenção, com os olhos mortos da mulher cravados na minha mente.
Com os meus dezoito anos da altura, creio que não foi ver a morte que me impressionou daquela maneira — já tinha visto pessoas mortas antes, e de perto —, mas antes a espécie de imortalização da morte que aquela imagem constituía. O fotógrafo parecia ter conseguido prender o instante em que a vida se esvai, o momento em que os olhos se imobilizam, vítreos, como se fossem eles o indicador da vida, e não o bater do coração.Na altura era Verão, Setembro, talvez, mas recordo-me de ter tremido de frio. Saí do CCB, enfiei-me no eléctrico que ia para a Cruz Quebrada e assim que entrei no quarto sentei-me em cima da cama, a olhar para a parede em silêncio, tomada por um misto de náusea, horror, incredulidade e raiva, e um sem-número de emoções diferentes e contraditórias. Durante alguns dias a comida custou a passar na garganta, e com o tempo aquela sensação de agonia acabou por se esbater. Ainda assim, dificilmente irei esquecer aqueles olhos vítreos de papel que me fitavam, mortos.

Uma questão de mamas

O mais recente escândalo nos States — há muitos, um deles foi a Aguillera ter-se enganado a cantar o hino no Super Bowl, que horror, já não bastava o mamilo da outra ter saltado e agora este crime, enforque-se a criatura, queime-se e atire-se os restos mortais aos cães, uma pessoa que se engana a cantar o hino americano não merece respirar — estava eu a escrevinhar sobre outra coisa e perdi-me, já é hábito, e o escândalo é que uma das meninas de Glee, a Lea Michelle, apareceu com um graaaande decote na capa da Cosmopolitan (e isto depois de uma sessão para a GQ que já tinha feito correr muita tinta, enfim, a miúda não aprendeu e voltou a fazer das dela), e então os paizinhos ficaram muito ofendidos com o decote da rapariga (que por sinal é maior de idade), indignadíssimos por a revista mostrar que a angelical Rachel tem mamas, que horror, como é possível, uma menina que a minha filha de cinco aninhos ou o meu anjinho de oito anos idolatra tem mamas, ai que nojo, como é possível isso acontecer, que desgraça, eu aqui a tentar esconder as Hustler e as Playboys e as Penthouse e outras que tais junto com os dvds pornográficos e vai a Cosmopolitan mete as maminhas da Rachel na capa, para estarem expostas em todos os quiosques do país — bem, todos não, houve um no Texas que baniu a revista das bancas —, repito, como é possível mostrarem às criancinhas que a Rachel tem mamas, que ela é uma mulher, ídolo de criancinhas e adolescentes, sim, mas mulher, e caso não se saiba em terras do tio Sam, toda a gente tem mamas, até mesmo os homens, o que julgam?, um defeito evolutivo qualquer fez com que os homens continuassem a ter mamas mesmo que elas não lhes sirvam para nada — ups, estava a esquecer-me que em algumas partes dos States o criacionismo é lei e que o evolucionismo foi banido em muitas escolas —, enfim, estamos a falar de um país onde um grupo de cidadãos quis fazer com que as mães fossem proibidas de amamentar os filhos porque a amamentação causava prazer sexual às mãezinhas, grandes taradas, mas pronto, não tem mal deixar-se garotas de treze anos meterem implantes de silicone nas mamas e botox na cara para prevenir as rugas (esperem aí, não foi a Rachel que fez isso? Se não foi ela, foi uma outra qualquer do Glee), dizia eu que não faz mal miúdas de treze anos se recauchutarem todas, não faz mal as criancinhas verem vídeos musicais onde a única coisa que se vê são rabos a abanar, rabos, rabos e mais rabos, quanto maiores, melhor, mas uma mulher, maior de idade (Lea Michelle tem vinte e quatro anos), ser fotografada para a capa de uma revista com um vestido preto com um decote pronunciado já é um escândalo a nível mundial...
15/02/2011
A ouvir: Search and Destroy, 30 Seconds to Mars