Azahar

Azahar veio para Portugal, fechada numa gaiola enfiada na caixa de carga de uma carrinha comercial. E não, Azahar não é uma imigrante ilegal daquelas que todos os dias saem de África rumo a uma vida melhor na Europa via Canárias, enfiadas em contentores nos porões de navios e que muitas vezes chegam ao destino já mortas. Azahar é uma fêmea de lince ibérico que nuestros hermanos remeteram para Portugal para evitar o fim da espécie - de Espanha também vêm coisas boas, o que julgam? Pensam que é só nereidas e maus ventos e maus casamentos? - e mais quinze se seguirão à Azahar, e podem pensar como é possível que um coelho fale de linces, se é certo e sabido que para um lince coelho significa almoço, mas pronto, a campanha do «Salvem o lince da serra da Malcata» com que nos bombardearam na escola primária nunca me saiu da cabeça, sempre admirei os felinos pela sua independência, quer fossem gatinhos ou gatões, e se fechar os olhos parece que ainda consigo visualizar o cartaz da campanha para salvar o lince, com o bicho a olhar para nós em tom acusador, enfim, vi há pouco um vídeo da pobre Azahar aterrorizada com as orelhas baixas de pânico e ar de quem está morto de medo, e não pude deixar de sentir pena do pobre bicho, coitadinha, devia estar a pensar «que horror, vão levar-me para Portugal, aquele país do Terceiro Mundo, o que irá ser de mim?», e de certeza que a esta hora aqueles que viram o vídeo ou leram a notícia devem estar a escrever comentários nos jornais online a culpar o Sócrates (não o grego, o outro) pela quase extinção dos linces, ainda para mais porque o homem nasceu para os lados da Malcata, portanto a culpa é dele, e porque raio é que andam a gastar dinheiro para tentar salvar o diabo dos bichos, se depois eles vão comer os coelhos todos e depois já não vai haver nada para caçar, que chatice, raios os partam, mas se virmos bem as coisas, a conservação das espécies tem de ser feita mesmo que custe dinheiro (o que é que não custa?) e que estejamos em época de crise (a sério?), porque na natureza tudo é equilíbrio e se uma peça falha, tudo descamba, os próprios linces começaram a desaparecer por causa da falta de coelhos para comerem - acho que devem ter todos fugido para capas de livros, a julgar pelos últimos lançamentos - e além da Azahar também deveriam pensar nos lobos, não é só mostrá-los todos bonitinhos nas telenovelas e em anúncios a perfumes, é preciso preservá-los, sei que o Capuchinho Vermelho não deve concordar comigo mas azar o dela, linces e lobos não podem desaparecer, e sinceramente desejo a melhor das sortes à Azahar, que ela seja feliz e tenha muitos lincezinhos para que a sua viagem não seja em vão.
26/10/2009
A ouvir: Taya Tan, Pink Martini

Tenho saudades...

Tenho saudades do «Tou Xim?» da Telecel, que agora já nem Telecel é, é Vodafone, e agora de cada vez que vejo um anúncio à Vodafone (atenção, fanhosos, a pronunciarem a palavra...), dizia eu que de cada vez que vejo um anúncio à Vodafone penso «mas que raio é que estes tipos andam a fazer?», talvez o problema seja meu, mas sinceramente não consigo compreender os anúncios deles, um fulaninho escanzelado com ar pateta armado em roqueiro a grasnar «tumpz-tumpz-tumpz» enquanto abana a cabeça, ou pessoas a explodirem em nuvens de penas - porquê penas? Tratar-se-ão de patos? Se a ideia é mandar gente pelos ares, porque não tripas e sangue e pedaços de braços e de pernas? - ou então os spots de rádio, em que uma fulana de voz emproada pergunta o que lhe podem conseguir com dez euros em dez horas, que diabo é isto, não sabem fazer anúncios como deve ser, com um pastor de ar feliz no meio de um rebanho de ovelhas expectantes a olharem para o aparelho e depois o homem a agarrar nele e a dizer com aquele tom inconfundível que ficou gravado no cérebro de milhões de pessoas, «tou xim?... É pra mim!», a sério, tenho pena que já não se façam anúncios assim, se temos de gramar com anúncios a telemóveis de cinco em cinco segundos, ao menos que eles sejam de qualidade (os anúncios, claro!), e já agora, não haverá por aí ninguém que queira escrever um «Publicidade para Totós»?
08/10/2009

Estou de dieta

(Aviso: escrito com o modo nonsense on.)

Decidi fazer dieta, mas uma dieta especial: deixei de ler jornais, de ver notícias na televisão, de ouvir notícias na rádio e tudo o que implique recepcionar «informação»; agora limito-me a ler os títulos nos jornais online, e mesmo assim não é em todas as secções, e desta forma tento combater a já mítica obesidade mental aventada pelo mítico Andrew Oitke que nunca se chegou a saber se existia ou não, pelo menos nunca conseguir encontrar o dito livro que o homem supostamente escreveu, mas pelo sim pelo não, resolvi dar-lhe ouvidos e combater o excesso de informação que todos os dias nos entra pelo cérebro adentro, porque agora tudo é notícia, uns dizem que o acidente de triciclo em Alguidares de Baixo provocou um despiste de meia dúzia de carrinhos de linhas enquanto outros já prevêem uma guerra civil com a população enfurecida de Alguidares de Cima, ainda há dias li uma notícia sobre um suposto Jean Valjean que roubou um cachorro quente numa terriola qualquer na terra do Tio Sam e foi condenado a dezoito meses de cadeia, a dita notícia não referia era se o Jean Valjean dos tempos modernos tinha cadastro, se a pena foi efectivamente pelo roubo ou por posse de arma ilegal, ou por exemplo por desrespeito à autoridade, tipo «o-que-é-que-queres-ó-cabrão-pensas-que-por-teres-uma-farda-não-levas-nos-cornos-como-os-outros?», enfim, durante muito tempo ainda tentei — juro que tentei, mesmo, MESMO — separar o trigo do joio, separar o arroz de polvo malandrinho do puré de batata de pacote a saber a cartão canelado, a vitela assada com alecrim e rosmaninho das batatas fritas pré-congeladas e inundadas em óleo usado e queimado, tentei optar por uma alimentação mental saudável, com uma escolha criteriosa da informação que recolhia, dos jornais que lia, dos telejornais a que assistia, dos programas que via, mas foi em vão, a fast food mental assalta-me a toda a hora, posso recusar delicadamente o jornal gratuito que o distribuidor brasileiro tenta à força enfiar-me debaixo do braço — ok, por vezes não era delicadamente, admito — mas depois quando entro num café ou vou a casa de alguém tenho de gramar com a televisão aos berros a debitar notícias sobre as formigas electrocutadas nas pistas de carrinhos de choque da festa da Nossa Senhora dos Caramelos, ou o rádio a noticiar estudos sobre a relação existente entre a cor da casa e o salário auferido, enfim, já nem sei o que estou para aqui a escrever, o que sei é que fiquei enjoada com tanta fartura e estou num ponto em que já não sei o que é verdade ou mentira, o que é bife do lombo e o que é carne enlatada rançosa e a escorrer banha, e por isso decidi fazer uma dieta de informação, não sei se temporária ou permanente, para evitar que o meu pobre cérebro fique obeso.
07/10/2009
A ouvir: Blow, Wind, Blow, Alison Moyet