Hamsters e Homens


Não, não vou dissertar sobre alguma versão retorcida do clássico do Steinbeck, God rest his soul. Lembrei-me agora de uma piada que me mandaram uma vez por e-mail, que é aquela coisa com que hoje em dia mantemos contacto com a ex-colega de trabalho que emigrou para Moçambique ou que substitui os recados na porta do frigorífico da esposa para o marido ou vice-versa, do género «compra leite» ou «vai buscar o casaco à lavandaria», e que substituiu as cartas e os postais, que hoje ou são contas para pagar ou publicidade, ou até nem isso porque há muitas entidades que em nome do ambiente e das arvorezinhas que todos os anos são cortadas decidiram optar pela facturação electrónica (ambiente, uma ova!, é tudo uma questão de redução de custos porque o papel é caro e os envelopes e os selos também, e até a cola para colar o envelope e a tinta custam dinheiro, pobres das árvores que merecem e muito ser protegidas, mas que pagam as favas por causa da visão economicista dos nossos gestores), enfim, estava eu a falar do e-mail, de hoje não usarmos cartas nem postais, embora não me conste ainda que a Hallmark ou outro fabricante de cartões postais tenha falido, bem, estou outra vez a perder-me, e trocamos e-mails com a ex-colega que faz fatias douradas no Natal em Moçambique mas não usamos o telefone para o que quer que seja a ponto de os aparelhinhos de disco que tínhamos nas nossas casas quando éramos miúdos terem ganho teias de aranha ou se terem transformado em peças de museu, usamos sim os telemóveis topo de gama que servem para tudo menos para falar, porque até servem para enviar os ditos e-mails, mas pronto, vamos lá à piada, era um vídeo de um homem de fato e gravata, com uma pasta na mão, do género daqueles que todos os dias se atropelam uns aos outros na rua na pressa de chegar ao emprego (corre, coelhinho, corre), mas que estava numa roda daquelas dos hamsters, ou como os porquinhos-da-índia. E fiquei a pensar com os meus botões se não seríamos todos uns hamsterzinhos a correr nesta roda gigante chamada Terra, que também gira sobre si mesma em volta de um eixo, e imagino quantos terão sido transformados em churrasco só por terem dito isto que disse agora, que a Terra gira sobre si mesma enquanto roda em volta do Sol, enfim, adiante, que a Inquisição já lá vai, e o hamster corre e açambarca a comida nas bochechas para depois comer mais tarde escondido no quentinho do ninho, mas é estranho porque nem todos têm ninho, têm um apartamentozinho num bloco anódino no meio de um conjunto de blocos anódinos onde vivem outros hamsters igualmente anódinos, hamsters que só conseguem procriar uma vez com muita sorte porque hoje em dia não há dinheiro para mais crias, e também há hamsters que nem pensam em açambarcar comida, engolem-na quando podem não vá vir outro hamster maior e roubar-lha, ou então simplesmente consideram que não vale a pena guardar a comida porque no dia seguinte irão correr outra vez para a roda e ganhar mais dinheiro para comprar mais comida que depois não têm tempo de comer porque estão demasiado ocupados em fazer a roda girar.
E realmente é o que todos somos, uns hamsterzinhos a correr em volta da Terra para a fazermos girar, depressa, depressa, mais depressa (corre, coelhinho, corre, não vá alguém apanhar-te, alguém que não sabes quem é nem se realmente corre atrás de ti para te apanhar, mas corres na mesma porque é só isso que sabes fazer).


22/Janeiro/2008


A ouvir: Tower of Song, Leonard Cohen

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