O que foi feito das batatas?

Talvez tenha sido a única pessoa a reparar nisso, ou pode ser que mais alguém tenha notado e que uma vez mais isto seja apenas a minha mania de achar que sou diferente dos outros, mas a verdade é que as batatas quase desapareceram das nossas mesas — excepto as fritas que de batatas a saber a batata já pouco têm —, hoje em dia o que está a dar é o arroz e as massas de todos os tipos e feitios, ou se calhar não, que os hidratos de carbono engordam diz o doutor Atkins (dizia, antes de ter caído da escada abaixo e ter ido para o jardim das tabuletas), e agora que penso nisso lembro-me que antigamente era raro o dia em que não comia batatas, se não era ao almoço era ao jantar, e havia duas ou três marcas de arroz, quando muito, e a massa era esparguete ou massa meada ou estrelinhas para a canja ou cotovelinhos ou uns canudinhos aos quais a minha irmã apelidava carinhosamente de «canos de esgoto», e por vezes uns lacinhos comprados num dos poucos Pingo Doce que havia numa das frequentes idas ao Porto para tratamentos médicos, e de caminho passava-se na Pérola do Bolhão e comprava-se cevadinha, nunca soube ao certo o que era aquilo mas sabia bem, a mim faziam-me lembrar carcaças minúsculas com aquela forma redondinha e aquele risquinho no meio, e hoje em dia se abrir a despensa em casa encontro cerca de uma dúzia de tipos de massa, esparguete, rigattoni, farfalle, penne, tagliatelle, cappelli di angelo, aletria, massa de arroz, estrelinhas, pevides, placas de lasanha, búzios, cannellonis, mais as massas para o miúdo em forma de aviões e comboios e carrinhos e peixes e estrelas-do-mar e conchas e cavalos-marinhos, e quanto ao arroz há-o carolino, agulha, vaporizado, basmati, tailandês e integral, mas se abrir a outra porta verifico que o cesto das batatas está quase vazio, e pergunto-me porquê, será por elas se estragarem com tanta facilidade, será porque têm de ser descascadas e cortadas, não bastando apenas abrir um frasco e despejar para dentro da panela, e a massa coze em cinco minutos, o arroz demora um pouco mais, e de entre os três as batatas ficam a perder porque são as que levam mais tempo a correr, não, a cozer — com a pressa saiu-me «correr» em vez de cozer, deve ser mesmo uma questão de tempo, o bem mais escasso de todos —, e até o puré de batata passou a ser uns flocos a saber a cartão canelado que se misturam com leite e que por mais noz moscada que leve ainda continua a saber a cartão, é uma pasta que não tem emenda, enfim, mas que diabo se passou com as pessoas para terem deixado de comer batatas, é estranho, os nossos hábitos alimentares mudaram realmente, antigamente era ver as merendas que se levavam, recordo-me das minhas irmãs a levarem a marmita para o trabalho, uma espécie de panela que levava água quente por baixo para manter quente a comida que ia numa outra panela pequenina por cima dessa, e quando se ia para a praia era só ver os tachos e as panelas com o arroz e a feijoada embrulhados em jornais, juntamente com o garrafão do tinto, a melancia, as tupperwares (the one and only, não as imitações reles que se vendem agora em todo o lado por cinquenta cêntimos cada três) com panados e bolinhos de bacalhau e rissóis feitos em casa, mais um saco de pano cheio de pão e broa de milho, mas pronto, já estou outra vez a divagar, queria falar era das batatas, onde é que elas andam, terão sido atingidas por alguma praga como a da Irlanda no século XIX, o que é que as pessoas de hoje têm contra as batatas, há por aí uma acção qualquer em Tomar para incrementar o consumo do feijão, e pergunto-me porquê não fazer uma manifestação pró-batatas, se hoje há todo o tipo de causas absurdas, desde o «Salvem as Baleias» à Associação dos Amigos dos Automóveis Antigos, passando pela Liga dos Amigos das Moscas-da-Fruta, porque não salvar as batatas, pensem só na quantidade de novos postos de trabalho que a McCain e a Matutano e outras empresas de batatas fritas iriam criar para que todos nós andássemos a comer batatas — a bem ou a mal —, e talvez seja realmente essa a verdadeira solução para a crise mundial que avança a passos largos para cima de nós qual praga bíblica de gafanhotos prontos para nos devorar…

30/Setembro/2008

A ouvir: Dancing to Myself, Billy Idol

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