Someone to watch over me

Um dos maiores prazeres deste mundo é ouvir a música de Gershwin, sobretudo se for na voz de Sarah Vaughn, ou até mesmo tocado por um saxofonista desconhecido numa estação de comboios que toca na rua para ganhar uns trocos, I’m a little lamb who’s lost in the woods / I know I could always be good to the one who’ll watch over me… e ponho-me a pensar que é disso que todos andamos à procura, somos todos cordeiros perdidos à procura do pastor, todos andamos à procura de alguém ou de alguma coisa, there’s a somebody I’m longing to see / I hope that he turns out to be / someone to watch over me, e por isso agarramo-nos a qualquer coisa, o que quer que seja, porque a vida é uma procura incessante e nunca estamos satisfeitos, queremos sempre mais e mais e mais, e acreditasse em Deus ou nos ensinamentos que me inculcaram nas aulas de catequese diria que não só nascemos em pecado mortal, o pecado original, como a própria vida é um pecado mortal, um dos sete, a vida é ganância porque queremos sempre mais, mais coisas, mais dinheiro, mais felicidade, mais amor, mais saúde, mais paz, mais vida, viver mais um bocadinho, nunca nos fartamos, mais, mais, mais, viver a vida o mais intensamente possível, mas temos medo da morte, e é verdade que uma não existe sem a outra, não poderíamos conceber a ideia de vida sem termos concebido o seu oposto, tal como não pode existir Deus sem o Diabo, o belo sem o feio, a melodia (Gershwin outra vez, there’s a saying old / that says that love is blind / Still we’re often told / seek and you shall find) sem o barulho insuportável, e fazemos como diz a canção — e o ditado também — procura e encontrarás, seek and you’ll shall find, e corremos de um lado para o outro à procura de algo que não temos a certeza se alguma vez encontraremos, sempre com o tique-taque-tique-taque-tique-taque contra nós, nunca sabemos quando é que vai fazer tique-taque pela última vez, a única certeza que todos nós temos é que um dia iremos parar, mas tentamos adiar a paragem porque antes disso temos de encontrar o pastor, ao mesmo tempo que procuramos evitar o lobo, como se de um jogo de vídeo se tratasse, e há lobos em todo o lado, não é só na história do Capuchinho, há lobos esfaimados à espreita, e pensando bem, a pressa dos dias de hoje não é mais do que a nossa tentativa vã de escapar à inevitabilidade da morte, desse lobo armado de foice que anda atrás de todos os coelhos brancos e não só, de todos os animais, até dos cordeiros que confiam no pastor, porque diabos escolheram os cordeiros e não outro bicho qualquer, será que é por serem facilmente manobráveis? — basta agitar o cajado, anda senão levas, vai para onde eu te mando, ou então um cão mal-humorado a ladrar — e concluo que o principal motor da vida é o medo, a maior angústia que pode existir é saber que a vida tem fim e que não podemos fazer nada para evitá-la, e podemos fugir mas não escondermo-nos, porque mais cedo ou mais tarde ela encontra-nos, mesmo que o cordeiro não encontre o pastor o lobo encontra o cordeiro e devora-o, porque é para isso que os cordeiros existem, e por mais coisas que façamos e por mais que tentemos encontrar um fim para a nossa existência, fim no sentido de objectivo e no de termo, no fundo resume-se sempre tudo ao mesmo, o fim último da vida é a morte.
30/Abril/2008
A ouvir: Someone to Watch Over Me, Sarah Vaughn

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