12 de Setembro de 1933

12 de Setembro de 1933 era a data de nascimento oficial, aquela que vinha no teu bilhete de identidade, e também aquela que está gravada na lápide da tua sepultura. Mas todos sabíamos que tinhas nascido a 9 de Julho, e era nessa data que havia o bolo, o espumante e presentes, um bolo de canela porque não gostavas de doces e o de canela escapava porque era escuro. Talvez gostasses de bolos escuros porque te davam a sensação de que não levavam o leite que tanto abominavas. Não sei se era esse o motivo, porque nunca tive oportunidade de te perguntar. Havia tanta coisa de que não gostavas que por vezes era mais fácil enumerar aquilo de que efectivamente gostavas. Era curioso, não comias carne nem doces nem natas nem tanta coisa de que não me lembro agora, mas ainda assim eras gordo. Quem olhasse para ti pensaria que comias como um alarve, como aquela médica do centro de saúde que tanto te ofendeu. Feijoadas, grandes bifes, assados, presunto, bolos a transbordar de creme e de natas, chanfanas, caldeiradas, tantas e tantas coisas, e tu, nada. Proteínas, só o omnipresente bacalhau comprado no Manel da Estação ou então trazido de Tui por algum conhecido, na altura em que quase não havia bacalhau à venda em Portugal, umas pescadas de quando em quando, sardinhas pequeninas refogadas, ou então das grandes e gordas, assadas na brasa, uma ou outra solha, e polvo. Lulas não, os tentáculos metiam-te impressão (como se o polvo fosse feito de asas). Os pequenos-almoços nunca variaram desde que me lembro. Todos os dias a mesma malga de café de saco, o teu «café preto» e um bocado de broa. Ah, e uma colher de sopa cheia de açúcar no café. Leite era um ódio de estimação da tua família, não havia um que escapasse, mas vá lá, admitias queijo flamengo uma vez por outra, de preferência com marmelada, e quando começaste a ficar verdadeiramente doente, lá acabaste por aceitar manteiga.
A rotina era de tal forma rígida que quase vinte anos depois ainda me lembro de tudo como se nos tivéssemos visto ontem. Acordavas com o trrrriiiim daquele despertador barulhento de latão, depois vestias-te, tomavas a malga de café com a broa - sempre a mesma malga, não podia ser outra qualquer - e depois ias trabalhar. Vinhas à hora de almoço, comias sempre no mesmo prato de vidro, o único em toda a casa que não era de faiança, com os mesmos talheres, diferentes dos outros porque não gostavas dos garfos e facas e colheres que tínhamos, e bebias sempre o vinho branco da mesma caneca castanha de barro vidrado com videiras. Depois deitavas-te na cama uns minutos e saías outra vez. Ao final do dia saías do trabalho, ias comprar o Comércio do Porto (se fosse sexta trazias também o Tal & Qual e registavas os totobolas e totolotos), e vinhas para casa. Quando dava vestias umas calças velhas e uma camisa com mais anos do que eu e ias cavar para a tua horta de estimação. Depois regressavas, lavavas-te e jantavas, e a seguir deitavas-te no sofá com o gato em cima da barriga a ver o Telejornal. No fim, vestias-te e ias «dar uma volta», o mesmo café de sempre no Café Império, as mesmas conversas com os mesmos amigos, o Calado, o das cassetes, o Bigodes, o Alcides, o Abel e o Russo, e lá para as onze voltavas para casa para no dia a seguir voltar a ser a mesma coisa.
Disto lembro-me, lembro-me de todas as coisas de que não gostavas, da minha irritação quando íamos ao café e obrigavas o empregado a trazer outro café porque querias que fosse numa chávena larga, da massa meada com chouriço de cada vez que a mãe se atrasava e não podia fazer o jantar, lembro-me da teimosia, do apego exagerado aos locais e às coisas, daqueles rituais quase obsessivos de usar sempre o mesmo prato e os mesmos talheres, mas custa-me recordar das coisas boas. Lembro-me de me levares à loja do Baptista e de me comprares invariavelmente um Sumol e um pacote de wafers, que trazia 5 bolachas. Lembro-me dos chocolates que desencantavas do bolso das calças. Lembro-me dos sabonetes e pastas de dentes que nos compravas como presente de aniversário - eras uma pessoa supostamente prática, as prendas têm de servir para alguma coisa. Lembro-me de nos levares às festas dali da zona, do S. João com os martelos, dos carrosséis da festa do Parque, de irmos a Espinho no comboio. Sei que deve ter havido muito mais coisas boas, mas custa-me lembrar-me delas. Talvez porque assim é mais fácil para mim, talvez assim não doa tanto, talvez assim o vazio não seja tão grande.
Parabéns, pai.
09/07/2009
A ouvir: November Rain, Guns'n'Roses

Mais vale tarde do que nunca...

Arranca hoje oficialmente a comissão de inquérito da ONU para determinar «as circunstâncias e os factos» do assassinato de Benazzhir Buttho, ocorrido em 2007. Não é que isso vá servir de muito, mas mais vale tarde do que nunca...
Há algum tempo que sabia que a ONU estava a tornar-se uma espécie de elefante branco, mas esperar dois anos para começar a investigar um assassinato é algo de que nem sequer a polícia portuguesa é capaz.