Teresinha

A Teresinha era um daqueles bonecos chorões que estavam na moda quando era criança e que veio ao colo da filha da vizinha desde Vigo porque os guardas da fronteira podiam implicar, e então a miúda fingiu que a boneca era dela, na altura ainda havia limites aos que se podia trazer ou não de Espanha, só se podia trazer x quilos de bacalhau por pessoa, como hoje em Andorra há limites de quantidades por causa dos impostos, mas enfim, adiante, e chamámos-lhe Teresinha porque a boneca trazia um babete onde estava pintado tiernecita, mas na altura era demasiado pequena para saber ler e quem leu aportuguesou o tiernecita para Teresinha, e a Teresinha trazia ainda uma chucha cor-de-rosa e chorava e abanava a cabeça se lha tiravam, e fez isso até que as pilhas derreteram lá dentro e deram cabo do mecanismo, e além da chucha vinha com um vestido de malha com a saia às pregas, também cor-de-rosa, e que tinha uma racha até à cintura — mais própria de uma call-girl do que do suposto bebé que deveria representar —, com uma fita de cetim branco a formar um laço que lhe caía pela perna abaixo, mais um penacho de cabelo sintético enfeitado com um lacinho igualmente cor-de-rosa, e a primeira coisa que fizemos quando nos apanhámos com a Teresinha nas mãos foi rebuscar no meio das minhas antigas roupas de bebé algo mais apropriado do que aquele vestido com a racha que expunha as pernas da criança ao frio, era Dezembro, coitadinha podia morrer gelada, e depois de a ataviar convenientemente com um vestidinho mais quente a minha mãe comprou-lhe umas botinhas de lã felpuda cor-de-rosa com cabeças de pintainho brancas a enfeitá-las para que a pobre da Teresinha não tivesse frio nos pés, e quase todas as semanas tínhamos o cuidado de lhe mudar a roupa consoante o tempo, se estava frio vestíamos-lhe um casaco que já tinha sido meu, se estava calor era um vestidinho de manga curta lilás comprado no mercado, e apesar de o tempo correr — tique-taque, tique-taque, tique-taque — a Teresinha continuou a fazer parte das nossas vidas, não só da minha mas da de todos lá em casa, e ainda hoje ao fim de vinte e tal anos ainda é a Teresinha, já sem pestanas nem penacho de cabelo e com um olho semi-fechado, mas ainda continua sentada em cima da cadeira do meu quarto como se o tempo tivesse congelado ali, e recordo-me de uma vez a minha prima ter ido lá a casa e de me ter pedido para levar a boneca para casa dela, e a ideia deixou-me em pânico, coitada da Teresinha, sabe-se lá o que lhe pode acontecer, mas lá me convenceram com o já-és-crescida-deixa-lá-a-miúda-levar-a-boneca-ela-não-a-estraga, só que nessa noite não dormi, passei a noite a contar os minutos que faltavam até chegar a hora de poder ir a casa da minha tia recuperar a Teresinha, e quando me vi com ela senti o alívio que uma mãe sente ao ver um filho perdido, e hoje ao olhar para o desapego dos miúdos em relação aos brinquedos sinto uma certa nostalgia, em criança era difícil para mim e para os outros miúdos conseguir brinquedos porque não havia muitos à venda, pelo menos no sítio onde cresci, e para conseguir a Teresinha tivemos de pedir à vizinha para a comprar na excursão a Vigo e dizer à miúda dela para trazer a boneca ao colo, tal era o medo de não a deixarem passar a fronteira, e hoje há por aí tantos brinquedos e tantas bonecas e casinhas e carrinhos e peluches e legos e tudo e mais alguma coisa que as crianças de hoje se dão ao luxo de ignorar os brinquedos que têm, tinha medo que a Teresinha se constipasse e por isso calçava-lhe as botinhas felpudas nos pés, e vejo hoje as minhas sobrinhas a mergulharem as barbies na banheira e a cortar-lhes os cabelos e a arrancar-lhe as pernas, e convenço-me de que realmente só damos valor às coisas quando são difíceis de conseguir.

04/Junho/2008

A ouvir: Into My Arms, Nick Cave & The Bad Seeds

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