As botas de A Flor do Meu Segredo

Há uns dias uns sapatos que me magoaram os pés fizeram-me lembrar um filme magistral que Pedro Almodovar realizou há uns anitos, uns treze, se não estou enganada, chamado La flor de mi secreto. A protagonista, uma Marisa Paredes absolutamente fenomenal, era uma escritora de romances cor-de-rosa que tinha uma vida amorosa desastrosa, entregue de corpo e alma ao marido Paco que já não queria saber dela para nada, e não é preciso irmos à ficção para estas coisas acontecerem, e há mais histórias destas do que pensamos porque é preferível enfiar a cabeça na areia como a avestruz (que por sinal não faz isso coisa nenhuma, mas é um preconceito que nos enfiaram a todos na cabeça, talvez haja alguma explicação sobre isso num livro chamado O livro da ignorância geral que ainda não li mas estou morta por o fazer), mas estava eu a dizer que a Leo/Amanda está presa num casamento que já não tem volta a dar, mas que insiste em manter por não saber o que fazer depois do fim, e a certa altura o marido sai de casa e assim que ele sai cai uma moldura ao chão, e já não me lembro bem como, mas vêem-se uma espécie de berlindes a saltitar no chão a acompanhar os passos do dito Paco, que é militar e tem umas botas que fazem muito barulho e o toc-toc-toc das botas junta-se ao toc-toc-toc dos berlindes ou lá o que é a bater no soalho de madeira, e nessa altura a Leo tem umas botas calçadas que lhe apertam os pés e a magoam, e sai para a rua completamente desnorteada com as ditas botas a esmagar-lhe os pés, mas ela não quer tirá-las porque foi o Paco quem lhas ofereceu, mas a certa altura a dor é demasiado insuportável e ela tenta tirá-las mas não consegue, e cruza-se com uma manifestação na rua, que por acaso até era real e o realizador aproveitou-a para o filme, enfim, e pede a um jovem que ia a passar para a ajudar a tirá-las, porque sozinha não consegue, e o rapaz quer tirar-lhas mas também não consegue, e há muitas e muitos Leos por aí que querem tirar as botas que lhes apertam os pés, as botas de uma relação que só nos magoa mas que não queremos tirar porque senão ficamos descalços e já não sabemos viver assim, ou as botas de uma existência que não queremos e que nos pesa na alma mas que não conseguimos tirar, ou as botas de um emprego que nos atrofia e que nos suga a alma e a inteligência e a juventude a ponto de nos tornar zombies, mas que não podemos largar porque quem é que paga as contas (e a Euribor!, ai meu Deus!, o monstro que povoa os piores pesadelos da geração Heidi e Tom Sawyer), ai de nós se tirarmos as botas, ficamos descalços e descalços não podemos andar, e há poucas botas dessas à venda, a nossa única hipótese é comprar botas que não duram para nada a troco de um recibo verde de papel que nem reciclado deve ser, botas que duram um mês ou dois e que nem sequer nos protegem condignamente os pés que ficam cheios de bolhas mas já não há urgências para podermos ir lá tratá-los, e passamos a nossa existência de Coelho Branco a correr de um lado para o outro a rezar para que apareça nas nossas vidas um Gato das Botas que nos arranque as botas miseráveis que temos calçadas e nos traga a fortuna que o bichano da história trouxe ao filho do moleiro. Mas isso é coisa que só acontece nos contos de fadas…
23/Janeiro/2008

A ouvir: Precious, Depeche Mode

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