A loja do Meco moleiro

Quando ainda não havia hipermercados com carrinhos que nos puxam sempre para as prateleiras quer queiramos quer não, as compras faziam-se na mercearia da rua, a loja do Meco moleiro a quem faltava um dedo, dizia-se que por obra de um porco, o homem fora dar de comer ao bicho e o porco comeu-lhe o dedo, às vezes acontece, a fome faz destas coisas, e naquela altura não havia tanto lixo nas ruas porque as coisas eram vendidas avulso, o açúcar amarelo era tirado com uma medida de alumínio para dentro de um saco de plástico e depois pesado numa balança com pratos de cobre, a marmelada embrulhava-se em papel ou então comprava-se logo um caixote inteiro de uma vez, que depois até servia para meter a areia dos gatos, e a lista não variava muito, era escrita no papel velho que tinha vindo com a marmelada ou com a broa de milho da véspera, uma caixa de seis garrafas de óleo, duas garrafas de azeite, dois quilos de açúcar amarelo, uma grade de garrafas de litro de frisumo de laranja, um garrafão de cinco litros de vinho branco, quatro pacotes de café de saco, um quilo de sal, um frasco de mokambo, alguns pacotes de arroz carolino e outros quantos de esparguete, de massa meada e de estrelinhas para a canja, dois pacotes de tulicreme e outros tantos de planta, leite gordo da mimosa, alguns pacotes de bolacha maria e mais um ou outro de catraias e de joaninhas e belinhas, por vezes latas de salsichas e de atum, um frasco de ajax e outro de superpop limão, uma embalagem de esfregões bravo e outra de cif, e depois de apontar tudo o que foi comprado num livrinho para se pagar no final do mês a filha do Meco moleiro metia aquilo tudo num carrinho de mão e levava a casa, e o resto das coisas iam-se comprando à medida das necessidades que o quintalzinho não conseguia suprir, a carne era comprada todas as semanas porque o congelador não dava para guardar grande coisa, o peixe vinha de uma carrinha que todos os dias subia a rua a apitar apitar apitar até parar num determinado sítio, ou então vinha do mercado ao sábado de manhã, o bacalhau era comprado num grossista ou então em Espanha quando já não havia mais à venda — há pessoas que não sabem que existia uma coisa chamada Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau, acho que o Museu do Oriente funciona nas antigas instalações dessa comissão —, e de um lado ou de outro surgiam sempre fruta e ovos e coelhos e frangos caseiros gordos que tinham de cozer durante uma eternidade para ficarem tenros, por vezes até carne de porco e de vaca, os limões eram colhidos da árvore imediatamente antes do uso, a salsa vinha do canteiro, a polpa de tomate era feita em casa e guardada em garrafas de vidro que ficavam na despensa, onde já estavam as tigelas de barro vidrado com marmelada e os frascos de geleia e de doce de tomate e as garrafas de vinho, os sabonetes e os champôs e a pasta de dentes e as escovas e os pensos higiénicos para as minhas irmãs e a laca e o papel higiénico eram comprados em lojinhas dispersas à medida que surgiam as necessidades, e naquela altura comprava-se apenas aquilo de que se precisava, sabíamos as quantidades de que necessitávamos e do quê, se levávamos a lista à loja do Meco moleiro saíamos de lá só com o que estava na lista, mas hoje vamos às compras comprar uma embalagem de fraldas para o bebé e temos de trazer as toalhitas e três tipos diferentes de leite, e iogurtes de várias tipos e uma miríade de bolachas diferentes e as natas para bater e as natas para cozinhar, há tantas variedades de cereais de pequeno almoço que até se perde a fome enquanto tentamos decidir quais é que vamos comer, e tudo o que se compra traz tanto plástico e tanto papel e tantas caixinhas que o caixote do lixo fica logo cheio, para quê guardar as garrafas de vidro se não fazemos polpa de tomate nem vinho, em criança as latas de bolachas eram usadas como caixas de costura mas hoje vão directas para o lixo, quantas toneladas de plástico são gastas todos os dias na carne embalada, antes dizia-se no talho «quero 4 bifes de vitela» mas hoje passamos na secção de carnes do hipermercado e não temos tempo para estar à espera da nossa vez e pegamos em duas cuvetes com dois bifes cada, e as compras continuam a vir em carrinhos, mas não carrinhos de mão como o que a filha do Meco moleiro costumava puxar, e sim dos carrinhos que nos puxam para as prateleiras para comprarmos mais e mais e mais — e eles puxam-nos, sim, não há dúvida disso, é um defeito qualquer que têm nas rodas que os faz ir para o lado das prateleiras, experimentem lá andar com um carrinho de compras a direito e vão ver que é verdade, não se consegue andar com ele em linha recta —, e a loja do Meco moleiro há muito que já não existe, e nem ele, que entretanto morreu, já era velho quando eu era pequena, e a filha dele já não puxa carrinhos de mão com as compras dos clientes, e também já não se aponta no livrinho o que se comprou para pagar no fim do mês, hoje paga-se com o VISA que também é no fim do mês, o VISA é o fiado dos nossos dias, e pergunto-me para quê tanta evolução, se no fundo as coisas continuam na mesma, será que realmente precisamos de continentes e jumbos e feira nova quando a loja do Meco moleiro é suficiente, e à medida que o tempo passa cada vez me convenço mais de que as nossas necessidades não mudam, o que muda é o conceito que temos de necessidade.

20/Junho/2008

A ouvir: Teardrop, Massive Attack

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