Narcisos

Está quase a acabar a época dos narcisos, essas florzinhas amarelas que têm tanto de belas como de frágeis, e é quase paradoxal que agora que a Primavera está quase a começar é que os narcisos desaparecem, a Primavera é que é suposto ser a época de ouro das flores, mas os narcisos tinham de ser diferentes, o ser diferente dos outros é como que uma característica da sua personalidade (talvez as flores não tenham personalidade, talvez tenham, não sabemos, nunca ninguém conseguiu falar com nenhuma para descobrir se sim ou se não, é daqueles mistérios que ainda não têm solução mas que podem vir a ter um dia, e lá estou eu a divagar), os narcisos são talvez a flor mais bela à face do terceiro calhau a contar do Sol, e o mito do seu surgimento também é belo, o jovem que se enamorou tão perdidamente pelo seu próprio reflexo que acabou por se consumir de desgosto e transformar-se nessas obras de arte vivas e amarelas, mas há outros narcisos, narcisos com braços e pernas, hoje em dia a sociedade pretende fazer de nós narcisos mas tenho dúvidas sobre o que nasceu primeiro, o culto do corpo ou a pressão da sociedade, como a história do ovo e da galinha (parece que já se «descobriu» que foi o ovo), mas pensando melhor acho que não foi assim, sempre existiu o culto da beleza, simplesmente o conceito de belo é que foi mudando, a diferença é que hoje em dia existe cada vez mais maquilhagem e cremes e dietas loucas e tintas de cabelo e cirurgia plástica e Botox e lipoaspirações e liftings e peelings e implantes disto e daquilo (e muuuito Photoshop, o que é que pensam?), e toda uma panóplia de artimanhas para fazer parecer o que não se é, e por mais que se tente escapar a esta louca lavagem ao cérebro é difícil resistir-lhe, e damos connosco a ansiar ter 18 anos para sempre, numa luta inglória contra o tempo que não pára (tique-taque-tique-taque-tique-taque, lá está outra vez o relógio), e a roermo-nos de inveja daquelas fotografias de pessoas supostamente perfeitas que nos entram pela retina adentro, e pensamos «porque é que não sou assim?», e a resposta é simples, nem todas as flores são narcisos, também tem de haver rosas, cravos, malmequeres, violetas, miosótis, túlipas, estrelícias, ou dedaleias e camomilas e dioneias e que comem moscas, se todos fossemos iguais o mundo seria demasiado sensaborão, viva a diversidade, ainda bem que há muito por onde escolher, mas parece que é destino do ser humano ansiar aquilo que não pode ter, tal como o Narciso que se apaixonou por si próprio (bem feito, quem o mandou desprezar a ninfa?), ou como todos aqueles que morreram em busca da fonte da juventude, ou dos que dariam tudo por viver para sempre, para quê, pergunto-me, «para sempre» sempre me pareceu demasiado tempo, enfim, a insatisfação é própria do ser humano, quer sempre mais, por isso é que deixámos de ser macacos e passámos a ser como somos, nunca nada é suficiente, essa sede de vida que nos devora e que nos consome por dentro, e se calhar queremos o impossível precisamente por isso, por ser impossível, porque temos medo do que poderemos encontrar ao conseguirmos o que queremos, e fazemos todos como diz o Vergílio Ferreira e amamos o impossível porque é o único que não pode decepcionar-nos.

05/Março/2008

A ouvir: Stupid Girl, Garbage

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