Memória a mais

Lembro-me mal da minha avó Luísa — morreu num dia de São Valentim quando eu tinha cinco anos — e uma das coisas de que me recordo é dos colares feitos com carrinhos de linhas vazios que ela costumava fazer-me, e lembro-me de andar a cirandar pela casa dela com aquilo ao pescoço, e também de lhe levar os feijões-de-cuco para ela fazer a sopa, umas ervas quaisquer a que dei esse nome, não sei porquê, meti na cabeça que aquilo eram feijões, e de cuco ainda por cima, o que teriam os feijões a ver com os cucos e com as ervas daninhas, e de cada vez que ia a casa dela tinha de passar por uma longa avenida que demorava imenso a percorrer com as minhas perninhas de alicate de miúda desengonçada, e era junto a essa avenida que costumava apanhar os ditos feijões-de-cuco para a sopa que depois lhe entregava num molhinho raquítico que ela agradecia sempre, embora suspeite que ela nunca os tenha usado na sopa, e sei que estas lembranças são verdadeiras, porque no dia do funeral dela lembro-me perfeitamente de estar na cozinha da senhora Palmira que ficou a tomar conta de mim porque crianças pequenas não devem ir a funerais, e estava sentada à mesa a beber chá de cidreira com cubos de açúcar, coisa que para mim era uma novidade, eu que pensava que o açúcar era amarelo e a granel, e ali estavam cubos de açúcar, mas que coisa mais estranha, e enquanto pensava nos cubos de açúcar olhei para a janela e vi que estava a nevar, vi os flocos de neve a cair, e disse «olhe, está a nevar», e no entanto a minha mãe diz que é impossível, nesse dia não nevou, caiu sim uma grande carga de granizo, mas nevar, não senhora, e pergunto-me como é que me recordo tão vivamente de ter olhado para a janela e ter visto a nevar, mas mais estranho ainda é lembrar-me de em tempos ter andado num carrossel com elefantes bebés, e uma vez mais a minha mãe diz que não, isso é mentira, que andei em póneis, mas recordo-me de na festa de Arrifana ter andado primeiro num carrossel com barquinhos que andavam à volta de um laguinho com dois dedos de água, e a seguir nos ditos póneis, lembro-me até de ter sacudido uma mosca que pousara numa das orelhas do bicho, pobrezinho, e a seguir vejo-me montada em cima de uma cria de elefante, e consigo até visualizar a textura da pele do animal, as rugas em volta dos olhos, as pestanas enormes e os olhos húmidos, de lhe ter tocado na pele grossa e escura e rugosa, mas logo a seguir penso que isso é impossível, não existem carrosséis com crias de elefante, que loucura, devo estar a confundir com alguma ida ao circo ou ao zoo, sei lá, mas o facto é que por vezes fecho os olhos e ainda vejo os olhinhos do elefante adornados por uma grossa camada de pestanas enormes e enfeitados com rugas a toda a volta, ou então os flocos de neve a caírem no dia do funeral da avó Luísa, e por mais que tente convencer-me de que essas memórias são falsas, elas permanecem lá, impressas no meu córtex ou lá onde ficam as memórias, como se quisessem forçar-me a acreditar que são reais.
20/07/2010
A ouvir: Your Painted Smile, Bryan Ferry

A mala do Sport Billy

Há dias peguei na minha mala para tirar um pacote de lenços de papel e antes de conseguir agarrar no dito, saiu-me de lá um avião militar, uma betoneira, um BMW preto, um tractor e um bombeiro, e isso fez-me pensar na obsessão das mulheres por malas, e já nem me refiro às Vuitton ou às Birkin da Hermès nem a outras que tais que custam quase o equivalente ao PIB de alguns países subdesenvolvidos, refiro-me a tudo o que sirva para guardar tralhas, não interessa de são compradas na Gucci ou na feira de Caminha, o que importa é terem espaço para guardar tudo, a carteira, os lenços de papel, o telemóvel, o iPod, o estojo de maquilhagem, os comprimidos para as dores de cabeça, o batom do cieiro, o creme para as mãos, um par de collants suplentes porque não vá o diabo tecê-las, a lima das unhas, o estojo de costura em miniatura surripiado de um hotel qualquer para um ou outro botão mais teimoso, os pensos rápidos para os sapatos mais cruéis, o desinfectante para as mãos porque hoje em dia nunca se sabe, e as chaves, muitas chaves, as de casa, as do carro, as de tudo e mais alguma coisa, e a agenda, isto para as mais renitentes em confiarem nos Blackberries, enfim, do que eu gostava era de ter uma mala como a do Sport Billy onde se encontra sempre de tudo, podia lá caber um elefante ou uma nave espacial que o diabo da mala nem sequer pesava mais por isso, bolas, e de facto é uma pena que não existam coisas dessas, inventam-se tantas tralhas, e porque não inventar-se malas do Sport Billy, e já agora, de um material não poluente e biologicamente correcto, que isto de fazer mal ao meio ambiente não tem graça nenhuma e o que está a dar é ser verde…