Flower power


Gosto de narcisos porque sim. São amarelos, vivos, bonitos e solitários. Gosto de flores solitárias que se erguem altivas a exibirem a sua cor brilhante como uma mancha de vida. Do amarelo-vivo dos narcisos, uma mancha de sol radioso, do perfume doce e a seda das pétalas, passar a ponta do dedo pelo rebordo dentado do cálice, de ver o caule elegante e esguio orgulhosamente só a elevar a sua coroa gloriosa para os céus.

Gosto de túlipas. Não importa de que cor, se bem que as que mais me agradam são as brancas. Nunca estive na Holanda, a terra das túlipas, mas há uma terrinha onde estive há bem pouco tempo que espalhou túlipas em todas as muitas rotundas que por lá há. Vermelhas e amarelas, formam manchas de cor incongruentes e deslocadas no meio do asfalto. Gostava que houvesse túlipas pretas. E azuis. Talvez um dia haja.
Gosto de violetas. Roxas, pequeninas, frágeis e delicadas. As que apanhava em pequena tinham caules que mais pareciam linhas, e que começavam a retorcer-se como uma bicha-cadela pouco depois de terem sido colhidas.

Gosto de miosótis. Gosto dos minúsculos pontinhos de um azul-celeste por entre folhagem repolhuda. Em criança diziam-me que se chamavam olhinhos-de-nossa-senhora, mas sempre me recusei a usar essa designação: o anúncio das latas de tinta dizia que eram miosótis, e talvez tenha sido essa a minha primeira tentativa de rejeição dos dogmas católicos que me tentavam impor, como os trovões serem os ralhetes de Jesus ou o facto de se comer carne na Sexta-feira Santa significar um bilhete só de ida para o inferno.
Há muitos anos que não vejo miosótis. É pena.


Gosto de lírios.

Não gosto de dálias, as pétalas fazem-me lembrar cascas de cebola ressequidas.

Gosto de hortênsias. Gostaria de ter hortênsias em casa, mas tenho tanto jeito para cuidar de plantas que nas minhas mãos nem os cactos sobrevivem.
Gosto de nenúfares.

Não gosto de cravos nem cravinas, não por causa do 25 de Abril, mas porque fazem-me sempre lembrar cemitérios. A mãe de um miúdo que morreu atropelado e que andava na minha escolha tinha sempre cravos brancos no túmulo do filho. Têm um perfume enjoativo, que me parece cheirar a mortos.

Gosto de rosas. Há-as cor de sangue, de um vermelho-escuro aveludado, cor de chá, brancas e de uma infinidade de outras cores. À semelhança das túlipas, também não existem rosas pretas. Pergunto-me por que razão não existem flores pretas. Talvez um dia haja.


Gosto de amores-perfeitos. Pequeninos e aveludados, com gradações de cor nas pétalas. Fazem-me lembrar máscaras de carnaval. Não sei dizer porquê, mas parecem-me sempre que têm dois olhos ali no meio a espreitar.

Gosto de malmequeres amarelos, dos silvestres. Em criança costumava agarrar numa linha branca e numa agulha para fazer colares com eles, uma imitação caseira e barata dos colares de flores do Havai. E arrancar-lhes as pétalas uma a uma, mal-me-quer, bem-me-quer, e na maior parte das vezes o mal ganhava.

Gosto das camomilas e de umas florezinhas parecidas com as camomilas e das quais nunca soube o nome, e que costumava meter numa frigideira de brincar a fingir que eram ovos estrelados, e de lhes arrancar as pétalas brancas fininhas para fazer de conta que era coco ralado para decorar os bolos de terra chocolate.

Gosto de ter flores em casa. Gosto de ver aquela mancha viva de vida ali na jarra, embora estejam mortas a partir do momento em que são colhidas. Amarelas. Vermelhas. Roxas. Cor-de-rosa. Cor de laranja. Lilases. Brancas. Azuis. É indiferente. Gosto de flores.

(Só para lembrar que a Primavera está quase a chegar.)

«Não têm pão? Que comam bolo!»

A frase foi dita por Maria Antonieta (não, desenganem-se, ela não falou em croissants, apesar de ter sido ela, uma austríaca, a levar para França aquilo que é hoje considerado um ex libris gaulês), e ontem ao deambular pelos corredores de um Continente lembrei-me dela, já que quis armar-me em saudável e comprar pão escuro e com sementes, mas que raio de ideia a minha, em tempo de crise querer comer pão, onde é que isso já se viu, isso é coisa fina, dizia eu que queria comprar um pacote com um pão escuro e com sementes, até que olhei para a etiqueta do preço, uns insultuosos 1,99 €, e pensei «bolas, isto está caro» e pousei o pacote, e não teria pensado mais nisso se não tivesse olhado fortuitamente para a bancada em frente onde se alinhavam caixas e caixas de bolos embalados, fatias de bolo mármore a pingar gordura, bolos de arroz luzidios de margarina, e até pastéis de feijão em caixinhas de plástico com uma dúzia, e foram estes últimos que me indignaram de sobremaneira, porque custavam menos 50 cêntimos que um pão saudável feito com farinha não refinada, com farelo incluído e tudo, e umas sementinhas à mistura, e pensei que realmente a Maria Antonieta é que tinha razão, o melhor mesmo é comer bolo, que até é mais barato que o pão, mas ainda assim por descargo de consciência comecei a analisar os preços dos outros pães expostos, incluindo quatro fatias de um pão alentejano por 1,80 €, enfim, os bolos industriais a pingar gordura é que são bons, para quê dar à criancinha um pãozinho com manteiga ou fiambre ou queijo ou mesmo compota quando se pode dar-lhe um bolo, se dá menos trabalho pegar no dito e meter-lho à frente do que pegar no pão, agarrar numa faca e meter-lhe qualquer coisa lá dentro, que chatice ter de perder esses trinta segundos — o nosso ritmo de vida é cada vez mais acelerado mas acho melhor dispensar esses trinta segundos do que depois ir perder horas aos consultórios médicos em consultas de nutrição e tratamento da obesidade —, mas pronto, ainda pensei que o defeito seria do Continente, que atribuem preços estapafúrdios aos produtos a seu bel-prazer, mas ao chegar de manhã à cafetaria da empresa paguei por um simples pãozinho com manteiga apenas menos 5 cêntimos do que por uma bola com creme (com a entrada em vigor do Acordo Ortográfico vai ser assim que vou passar a designar as bolas-de-berlim que passarão a ser bolas de Berlim mesmo que sejam feitas em Alguidares de Baixo), e uma vez mais isto leva-me à Maria Antonieta e à sua declaração tão criticada que lhe custou a cabeça no sentido literal, «não têm pão? Que comam bolo!»