A Toy Story

A máquina de lavar loiça da Osul, azul e branca com uma gaveta verde, era a pilhas. Como máquina de lavar tem de meter água, toca de lhe enfiar água lá para dentro, pois como se lava sem água? Abri-lhe a porta, enfiei um copo de água lá dentro e liguei o interruptor. A máquina de lavar loiça nunca mais foi a mesma, é um facto, mas podia sempre fingir que ela funcionava e que tinha água lá dentro para lavar os pratos imaginadamente sujos que enfiava na gaveta de plástico verde.
E o frigorífico? Também era da Osul, e mais de uma vez espreitei nas lojas de electrodomésticos a ver se realmente havia frigoríficos daquela marca, pois no meu entender era bem melhor do que o Zanussi de lá de casa. Levava uma pilha AA no sítio onde habitualmente era o compartimento do gelo e tinha uma lâmpada minúscula que acendia de cada vez que se abria a porta, embora não me lembre de alguma vez lá ter refrigerado o que quer que fosse, apesar de por vezes enfiar lá para dentro pratinhos de plástico com rodelas de cenoura e restos de couves migadas que escaparam à panela do caldo verde.
Da varinha mágica, só me lembro que era azul e branca e que tentava sempre não ficar com os dedos presos nas lâminas de plástico. E o melhor de tudo era que não tinha fios, o que aos meus olhos a tornava mais prática do que a da minha mãe, uma coisa pesadona metade castanha e a outra cor de laranja, com um enorme pé metálico e com aquele apêndice de fio esbranquiçado atrás que se enredava sempre onde não devia.
Mas a Osul não fabricava apenas electrodomésticos, não senhor. Também faziam concorrência às melhores fábricas de móveis de Paços de Ferreira, pelo menos a julgar pela mobília de quarto em miniatura que eu tinha, de plástico castanho-escuro, com a cama, as mesas-de-cabeceira, a cómoda e a cadeira a condizer com tampo cor de café com leite.
O fogão, estranhamente, não sei onde foi feito. Só me recordo de ter um relógio na tampa que marcava eternamente as três horas, nunca soube se da tarde ou da manhã. E de cada vez que era preciso fazer bolos, pesava os ingredientes numa balança cor de laranja antes de os juntar à massa. E as panelinhas, vermelhas e minúsculas, que tinham grãos de arroz agarrados ao fundo? Por mais que as lavasse, o arroz não saía.
Com o tempo, a máquina de lavar loiça Osul foi substituída por uma Zanussi, tal como o frigorífico, e a varinha por uma Braun, as panelinhas vermelhas pelas suas congéneres da Celar e da Silampos. Mas ainda assim, por vezes, ao abrir a caixa de memórias da Internet, recordo o tempo em que não pensava no tempo.
29/11/2010
A ouvir: Hurricane, 30 Seconds to Mars

Classificados #3

Perdeu-se:
tempo. Não se deixa apanhar e costuma dividir-se em horas e minutos para conseguir fugir.

Dá-se recompensa a quem o encontrar.

Inception

Em «Inception», de Christopher Nolan, Cobb (Leonardo DiCaprio) diz a certa altura que a melhor maneira de se distinguir o sonho da realidade é perguntarmos a nós mesmos como é que fomos lá parar, lembrarmo-nos de como é que tudo começou. Estás sentado no bar de um hotel a beber um cocktail. Sonho ou não? Esforça-te. Lembras-te como vieste cá parar? Onde estavas antes? Como foi que vieste para cá? Conduziste até aqui? Vieste de táxi? A pé? Alguém te deu boleia? Se não te recordas disso ou do que se passou antes, é porque estás a sonhar.
Ora isto dá muito que pensar, porque eu não me recordo de como vim parar a este mundo...
06/09/2010
A ouvir: The Cathalyst, Linkin Park

This is not America






Ok, não morro de amores pelos americanos em geral, mas simpatias à parte, o extremismo do politicamente correcto está a atingir os limites do absurdo, e já não bastava a guerra declarada pelos fundamentalistas aos mealheiros em forma de porquinho que alegadamente ofende o Islão (ainda gostava de saber o que é que não ofende), como agora foi aprovada a construção de uma mesquita a escassas centenas de metros do Ground Zero, aquele sítio onde antes existiam dois mamarrachos até ao dia em que uns quantos lunáticos se lembraram de atirar com aviões carregados de passageiros contra os prédios, provocando a morte de mais de três mil pessoas, isso, leram bem, mais de três mil pessoas, mais coisa, menos coisa, porque decerto deveria haver ilegais cujos desaparecimentos nunca foram comunicados, por exemplo, ou restos humanos por identificar no meio daquela pilha gigantesca de destroços que (des)fez corpos em carne picada - quem não se lembra da história do lavador de janelas que alegadamente levou em cheio com um avião em cima? -, estava eu a dizer que a Câmara Municipal de Nova Iorque aprovou a construção de uma mesquita a centenas de metros do Ground Zero, o maior símbolo do horror do fundamentalismo, e serei só eu a achar que isto é o cúmulo do descaramento, da falta de pudor, da ignorância, permitir a construção de um local de culto islâmico mesmo em cima do sítio onde milhares de pessoas foram massacradas em nome do fundamentalismo, e por mais voltas que dê à cabeça, não consigo entender como é possível permitir-se uma coisa destas, imaginem o que era abrir um McDonalds ou um Starbucks em frente à Kaba em Meca, porque aí já não é religião que está em causa, é um modo de vida, e tenho a certeza que um fundamentalista (atenção, não confundir islamismo com fundamentalismo, são duas coisas completamente distintas), dizia eu que um fundamentalista considera certamente mais ofensivo o arco duplo do M do MacDonalds do que a cruz de Cristo, e atrevo-me mesmo a dizer que a estrela de David - beeem, se calhar não iria tão longe -, mas serei só eu a achar a construção de uma mesquita, e volto a repetir, a centenas de metros do Ground Zero, do palco horrendo do 11 de Setembro, a maior afronta ao mundo ocidental? Meus senhores, já que não tendes respeito por vós mesmos, pelo menos respeitem a memória das vítimas e daqueles que as perderam. A América não é assim...









Memória a mais

Lembro-me mal da minha avó Luísa — morreu num dia de São Valentim quando eu tinha cinco anos — e uma das coisas de que me recordo é dos colares feitos com carrinhos de linhas vazios que ela costumava fazer-me, e lembro-me de andar a cirandar pela casa dela com aquilo ao pescoço, e também de lhe levar os feijões-de-cuco para ela fazer a sopa, umas ervas quaisquer a que dei esse nome, não sei porquê, meti na cabeça que aquilo eram feijões, e de cuco ainda por cima, o que teriam os feijões a ver com os cucos e com as ervas daninhas, e de cada vez que ia a casa dela tinha de passar por uma longa avenida que demorava imenso a percorrer com as minhas perninhas de alicate de miúda desengonçada, e era junto a essa avenida que costumava apanhar os ditos feijões-de-cuco para a sopa que depois lhe entregava num molhinho raquítico que ela agradecia sempre, embora suspeite que ela nunca os tenha usado na sopa, e sei que estas lembranças são verdadeiras, porque no dia do funeral dela lembro-me perfeitamente de estar na cozinha da senhora Palmira que ficou a tomar conta de mim porque crianças pequenas não devem ir a funerais, e estava sentada à mesa a beber chá de cidreira com cubos de açúcar, coisa que para mim era uma novidade, eu que pensava que o açúcar era amarelo e a granel, e ali estavam cubos de açúcar, mas que coisa mais estranha, e enquanto pensava nos cubos de açúcar olhei para a janela e vi que estava a nevar, vi os flocos de neve a cair, e disse «olhe, está a nevar», e no entanto a minha mãe diz que é impossível, nesse dia não nevou, caiu sim uma grande carga de granizo, mas nevar, não senhora, e pergunto-me como é que me recordo tão vivamente de ter olhado para a janela e ter visto a nevar, mas mais estranho ainda é lembrar-me de em tempos ter andado num carrossel com elefantes bebés, e uma vez mais a minha mãe diz que não, isso é mentira, que andei em póneis, mas recordo-me de na festa de Arrifana ter andado primeiro num carrossel com barquinhos que andavam à volta de um laguinho com dois dedos de água, e a seguir nos ditos póneis, lembro-me até de ter sacudido uma mosca que pousara numa das orelhas do bicho, pobrezinho, e a seguir vejo-me montada em cima de uma cria de elefante, e consigo até visualizar a textura da pele do animal, as rugas em volta dos olhos, as pestanas enormes e os olhos húmidos, de lhe ter tocado na pele grossa e escura e rugosa, mas logo a seguir penso que isso é impossível, não existem carrosséis com crias de elefante, que loucura, devo estar a confundir com alguma ida ao circo ou ao zoo, sei lá, mas o facto é que por vezes fecho os olhos e ainda vejo os olhinhos do elefante adornados por uma grossa camada de pestanas enormes e enfeitados com rugas a toda a volta, ou então os flocos de neve a caírem no dia do funeral da avó Luísa, e por mais que tente convencer-me de que essas memórias são falsas, elas permanecem lá, impressas no meu córtex ou lá onde ficam as memórias, como se quisessem forçar-me a acreditar que são reais.
20/07/2010
A ouvir: Your Painted Smile, Bryan Ferry

A mala do Sport Billy

Há dias peguei na minha mala para tirar um pacote de lenços de papel e antes de conseguir agarrar no dito, saiu-me de lá um avião militar, uma betoneira, um BMW preto, um tractor e um bombeiro, e isso fez-me pensar na obsessão das mulheres por malas, e já nem me refiro às Vuitton ou às Birkin da Hermès nem a outras que tais que custam quase o equivalente ao PIB de alguns países subdesenvolvidos, refiro-me a tudo o que sirva para guardar tralhas, não interessa de são compradas na Gucci ou na feira de Caminha, o que importa é terem espaço para guardar tudo, a carteira, os lenços de papel, o telemóvel, o iPod, o estojo de maquilhagem, os comprimidos para as dores de cabeça, o batom do cieiro, o creme para as mãos, um par de collants suplentes porque não vá o diabo tecê-las, a lima das unhas, o estojo de costura em miniatura surripiado de um hotel qualquer para um ou outro botão mais teimoso, os pensos rápidos para os sapatos mais cruéis, o desinfectante para as mãos porque hoje em dia nunca se sabe, e as chaves, muitas chaves, as de casa, as do carro, as de tudo e mais alguma coisa, e a agenda, isto para as mais renitentes em confiarem nos Blackberries, enfim, do que eu gostava era de ter uma mala como a do Sport Billy onde se encontra sempre de tudo, podia lá caber um elefante ou uma nave espacial que o diabo da mala nem sequer pesava mais por isso, bolas, e de facto é uma pena que não existam coisas dessas, inventam-se tantas tralhas, e porque não inventar-se malas do Sport Billy, e já agora, de um material não poluente e biologicamente correcto, que isto de fazer mal ao meio ambiente não tem graça nenhuma e o que está a dar é ser verde…

Esperteza saloia

Se fotocopiar o calendário, será que os dias se multiplicam?

Crónica de uma morte anunciada

Um jornal noticiou que as colheres de pau estão em vias de extinção, e pus-me a cogitar com os meus botõezinhos de coelho sobre quais seriam as razões para tal drama, não é só o bicho-papão da ASAE a dizer que as colheres de pau vão ser proibidas porque são um foco de bactérias, se fosse assim também teria de se proibir o uso de esfregões para lavar a louça e vassouras e piaçabas e uma série de coisas que temos em casa, dizia eu - dizia, não, escrevia - que as colheres de pau estão em vias de extinção, e o ambiente também tem uma certa culpa, porque para cada colher de pau é preciso abater não sei quantas árvores - ou será o contrário? Acho que sim, mas quem sou eu para achar o que quer que seja -, o melhor é usar colheres de plástico made in sabe-se lá onde, sempre se ajuda a economia porque os donos das fábricas de colheres de plástico ou teflon ou o que quer que seja também têm de viver, e o governo sempre arrecada uns tostões com os impostos sobre as matérias-primas e sobre o transporte e sobre o gasóleo que os camiões que trazem as colheres de plástico e um sem-número de outras coisas, e além disso a colher de pau tornou-se um objecto obsoleto porque agora ameaçar os meninos com a colher de pau é crime, quantos homens e mulheres de hoje têm ainda pesadelos e andam no psiquiatra e a devorar caixas de prozac à conta da famigerada colher de pau, e quantos incêndios domésticos terão sido provocados por donas de casa incautas que deixaram a colher de pau ao alcance das chamas do fogão, enfim, a colher de pau é representa tantos e tantos perigos que realmente acabou por se tornar num inimigo público e por isso deve ser extinta. Morte à colher de pau.
14/06/2010
A ouvir: Last Cup of Sorrow, Faith No More

Batem leve, levemente...

Não era bem levemente,. Era um toc-toc-toc-toc insistente que me fez virar para trás à espera de encontrar um lavador de janelas pendurado por um gancho que me iria pedir para abrir melhor o estore ou outra coisa qualquer. Mas não, era um pássaro, não sei de que espécie, com as patitas fincadas na parede exterior e a olhar para mim com dois olhinhos curiosos esbugalhados, enquanto ia fazendo toc-toc-toc com o bico no vidro atrás de mim. Segundos depois de me ter voltado para ele, voou dali para fora, deixando-me a pensar que são pequenas coisas como esta que fazem com que os nossos lábios se curvem num sorriso.
22-04-2010
A ouvir: Dosvedanya, mio bombino, Pink Martini

Clean

Clean
The cleanest I've been
An end to the tears
And the in-between years
And the troubles
I've seen
Now that I'm clean
You know what I mean
I've broken my fall
Put an end to it all
I've changed my routine
Now I'm clean
I don't understand
What destiny's planned
I'm starting to grasp
What is in my own hands
I don't claim to know
Where my holiness goes
I just know that I like
What is starting to show
Sometimes
Clean
The cleanest I've been
An end to the tears
And the in-between years
And the troubles I've seen
Now that I'm clean
You know what I mean
I've broken my fall
Put an end to it all
I've changed my routine
Now I'm clean
As years go by
All the feelings inside
Twist and they turn
As they ride with the tide
I don't advise
And I don't criticise
I just know what I like
With my own eyes
Sometimes
Clean
The cleanest I've been
An end to the tears
And the in-between years
And the troubles I've seen
Now that I'm clean
You know what I mean
I've broken my fall
Put an end to it all
I've changed my routine
Now I'm clean
Sometimes

(Depeche Mode, lyrics by Martin Gore)

Andanças do coelho

Apesar de o tempo ser pouco e de andar a contar os minutos, o minutos contados vai ter dois irmãozinhos, um onde o coelho vai apontar baterias aos livros que anda a ler e outro para relembrar o falecido Frederico, uma peste de quatro patas a.k.a. «cão que mia» ou «gato dos infernos».
That's all, folks.

Splendor in the grass

Lido é bonito, mas ouvido... ouvido é soberbo.


I can see you're thinking baby
I've been thinking too
about the way we used to be
and how to star a new

Maybe I'm a hopeless dreamer
maybe I've got it wrong
but i'm going where the grass is green
if you like to come along

Back when I was starting out
I always wanted more
but every time I got it
I still felt just like before

Fortune is a fickle friend
I'm tired of chasing fate
and when I look into your eyes
I know you feel the same

All these years of living large
are starting to do a sin
I wont say it wasn't fun
but now it has to end

Life is moving oh so fast
I think we should take it slow
rest our heads upon the grass
and listen to it grow

Going where the hills are green
and the cars are few and far
days are full of splendor
and at night you can see the stars

Life's been moving oh so fast
I think we should take it slow
rest our heads upon the grass
and listen to it grow



Pink Martini, Splendor in the Grass

P.S.: Thanks, MJ! O CD é fenomenal

Petville

Há uns dias a Sara escreveu no blogue dela - que, BTW, está muito bem escrito e é bastante interessante - que um blogue é como um animal de estimação, temos de o alimentar senão ele morre, e assim sendo este coelho já deveria estar mortinho da silva, de tão poucas vezes cá meto as patinhas, e já que há tantas associações da treta (a Liga dos Amigos da Mosca da Fruta, porque não?), também poderia haver uma Associação Protectora dos Blogues Abandonados, cujos donos os deixam a ganhar teias de aranha cibernéticas de bits e bytes, e se há algo que possa ser alegado em minha defesa por ter cometido um crime tão grave como abandonar um blogue ainda que temporariamente, posso dizer que a verdade é que me tem faltado inspiração - sim, infelizmente é isso, o coelho tão desbocado, cínico e sarcástico desencantado com o mundo ficou sem palavras, ou melhor, sem assunto, e não é por o mundo se ter tornado um lugar melhor que não valha a pena ser criticado, o que se passa é uma coisa extremamente simples, fiquei com o bloqueio do escritor (se é que posso ter essa veleidade de achar que as palavras do meu bichinho eram arte comparável à da Siri, do Bret, do Mark, do Rodrigo, do Milan, do Gabriel, do Mario, do Eugénio, do Zé Luís, do Vergílio, da Carmen, e de tantos e tantos outros), enfim, gostava de conseguir alimentar este bicho com mais regularidade do que tenho feito mas ando mesmo a atravessar um deserto de ideias, ainda mais grave do que aquele que anda pelos lados de Alvalade ou da S. Caetano, mas pronto, logo que as ideias voltem prometo solenemente dar mais atenção a este bicho.