A condição humana

Há coisa de duas semanas assisti a uma cena que me fez pensar na condição humana, não na do Malraux, mas na do comum mortal, da caixa de supermercado com sotaque brasileiro insultada pelo cliente ou dos operadores de telemarketing que todos os dias nos assediam a qualquer hora e em qualquer lugar e em quem descarregamos a nossa fúria apesar de sabermos que estão apenas a fazer aquilo para que são pagos, e estava eu a falar da rapariga do supermercado, a moça disse ao cliente que estava à minha frente o total a pagar, trinta euros e treze cêntimos, e vai o homem, já entradote — para não dizerem que só os jovens é que são malcriados, os velhos também são, e às vezes até mais, apesar de já terem idade para ter juízo —, atira-lhe, literalmente, com vinte e cinco euros, nem mais, e vai a rapariga insiste e diz que são trinta euros e treze cêntimos, ao que ele responde com um esgar de nojo como se ela tivesse a lepra ou estivesse com gangrena no rosto, e depois de atirar uma nota de cinco euros para cima do tapete rolante com cara de frete, agarra num molho de notas de vinte euros, provavelmente em busca dos tais treze cêntimos, e começa a contá-las, eram muitas, não prestei atenção, e a rapariga ia esperando pacientemente que a criatura abjecta lhe pagasse o que faltava, enquanto ele ia contando as notas como que a dizer «estás-armada-em-cabra-sua-brasileira-de-m*****-mas-só-na-minha-mão-tenho-mais-dinheiro-do-que-aquilo-que-ganhas-em-dois-meses-atrás-dessa-caixa-armada-em-cabra», e a mulher dele ia rebuscando moedas dentro da mala com ar envergonhado até que lá encontrou uma de vinte e a deu à rapariga, e eu atrás para pagar só tinha vontade de dar àquele imbecil os sopapos que a mãezinha lhe deveria ter dado e não deu, e lembrei-me da incontornável mania de superioridade da espécie humana em relação aos seus semelhantes, não sou marxista nem nada que se pareça porque mesmo nas espécies animais (e vegetais, porque não?), há sempre o líder da manada, o galo na capoeira, e o chichi a marcar o território, se entras aqui levas uma unhada na tromba, há sempre os que comem mais e os que morrem de fome, a natureza é assim e não somos excepção, mas em determinados aspectos somos todos iguais, todos nascemos nus, quer seja numa maternidade privada caríssima ou na Alfredo da Costa ou até na ambulância do INEM — cala-te lá, coelho, não sejas má-língua — todos nascemos e todos morremos, mesmo que uns vivam como reis e outros morram à fome, mesmo que uns andem nus e outros com roupas cujo preço corresponde ao PIB do Malawi, mesmo que uns andem a pé e descalços e outros de Bentleys de quatrocentos mil euros, e aquele energúmeno do supermercado podia até achar-se melhor do que a rapariga brasileira que o atendeu na caixa, não vou dizer se era ou não porque não a vi numa situação idêntica para ter termo de comparação, neste país basta um molho de notas de vinte euros na mão para se ser doutor mesmo que se seja analfabeto e a rapariga da caixa do supermercado pode até ter doutoramento e ser, ela sim, Doutora, não um licenciado que como não podia deixar de ser se faz mais do que é, o eterno pavão que deveria substituir o galo de Barcelos, enfim, é um bocado como a história do leão e do rato, o homem até poderia ser muito rico mas se não houvesse a rapariga brasileira para o atender teria de ser ele a fazer a amanhar-se, sempre que estamos no degrau acima gozamos e humilhamos aquele que fica no degrau abaixo, como a Angelica dos Rugrats a achar-se superior aos primos que são bebés, quando ela própria só tem três anos, enfim, é quase como aquele anúncio que passava há algum tempo de um fulano que não podia ir naquele lugar do avião porque estava um preto no lugar ao lado, e a assistente de bordo chamava o preto para ir para a primeira classe porque realmente o coitado não merecia ir ao pé de uma besta daquelas, e será que a cena teria sido diferente se a rapariga não fosse brasileira, e pergunto-me qual é a verdadeira condição de ser humano, os animais têm papéis diferentes dentro da própria espécie e nós também, mas como saber qual é o nosso lugar num universo tão vasto, tão vasto, que não somos mais do que uma minúscula partícula de pó, mesmo que nos achemos os maiores?

19/Agosto/2008

A ouvir: Human Touch, Bruce Springsteen

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