Estrela-do-mar

Ao ler Uma Casa na Escuridão durante as férias e a pensar depois nas mutilações narradas na obra dei comigo a pensar se o ser humano não seria como uma espécie de estrela-do-mar, e podemos cortar uma das pernas à estrela que ela volta a crescer, e até três ou quatro de uma vez porque elas crescem, é difícil mas acontece, no livro cortam as pernas e os braços ao narrador e a uma das personagens arrancam o coração e a outra ainda furam os ouvidos com uma agulha e um violinista vê a mão brutalmente decepada na sua frente com um golpe seco, mas se pensarmos bem não é necessário haver nenhuma invasão estrangeira como no livro, a própria vida encarrega-se de nos mutilar, não estou a falar no caso do pára-quedista americano que ficou sem as duas pernas num acidente e que com próteses e tratamentos e afins passados alguns meses estava novamente a saltar do avião, estou a falar por exemplo do rapaz que sonha ser médico mas que não tem sequer capacidade intelectual para cumprir a escolaridade mínima e mesmo que tivesse não ia ter depois as condições económicas para pagar uma faculdade e que aprendeu o que pôde às suas custas com os poucos livros que conseguia comprar com o pouco dinheiro que lhe sobrava do ordenado, e para esse rapaz é como se lhe tivessem amputado as pernas e os braços porque não consegue chegar aonde sonha, ou aquele outro jovem a quem a mulher adúltera arrancou o coração e que não encontrou melhor forma de lidar com a dor a não ser beber uma garrafa de lixívia e atirar-se do quarto andar no dia dos namorados, ou ainda muitos outros casos incontáveis, a criança da talidomida que nasceu sem uma perna e sem um braço e hoje é uma mulher fantástica e independente com uma carreira de sucesso, e se há casos irremediáveis, porque até as estrelas-do-mar morrem, ninguém é imortal, por muito que doa a muita gente, há certas estrelas-do-mar que por mais dificuldades que lhes surjam conseguem sempre que as pontas cresçam, e tenho o privilégio de conhecer uma estrela-do-mar que ainda há pouco tempo estava presa a uma cama de hospital em coma, uma figura frágil de pele e osso, e por mais anos que viva dificilmente irei esquecer aquela imagem de um emaranhado de tubos emoldurado por um tufo de cabelo amarelo, tantos tubos que nem se via a pessoa que estava por detrás, tão magra que parecia mais que o lençol estava amarrotado, nem dava para se perceber os contornos da estrela-do-mar, e essa estrela-do-mar que toda a vida foi como um junco sempre a ser vergada pelo vento, aparentemente frágil mas que não quebra nunca porque os juncos são assim, vergam mas não partem, a estrela-do-mar vergou, secou, mirrou, cortaram-lhe várias vezes as pontas, mas a estrela-do-mar conseguiu sempre sobrepor-se a tudo e a todos, numa capacidade extraordinária de resistência de alguém que esteve no inferno e voltou para contar a história, e que por mais dificuldades que se lhe deparem nunca deixa de ser uma estrela-do-mar cor-de-rosa.
07/Julho/2008

A ouvir: Where the Wild Roses Grow, Nick Cave e Kylie Minogue

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