Geração «papinha-toda-feita»

Compreendo que nos dias de hoje não há tempo para nada — corre, coelhinho, corre — mas a verdade é que somos cada vez mais a geração pret-à-porter, ou melhor, a geração «papinha-toda-feita», e não sei se é por não termos tempo ou se foi o não ter tempo que nos transformou nisso, em criaturas que querem tudo feito e na hora, se não tens dinheiro para pagar azar, pede um crédito, tens é de ter e já, e esta ideia vem a propósito de um comentário feito pela minha mãe, que depois de ter sido arrastada pelo centro comercial a entrar e a sair de lojas desabafou dizendo que «já não se vêem aquelas roupinhas jeitosas e bem feitinhas que havia antigamente, hoje em dia é tudo roupas feitas em série, mal-amanhadas e todas iguais», e de facto hoje quem é que vai ao alfaiate ou à costureira mandar fazer o que quer que seja, quem é que tem tempo para isso, já para se conseguir ir numa fugida a uma catedral de consumo — o chamado comércio tradicional é só para os reformados, que são os únicos com disponibilidade para frequentar locais que abrem às 9 e fecham às 19 —, dizia eu que já conseguir isso é o 13º trabalho do Hércules, ainda para mais com o bebé a escapulir-se de trinta em trinta segundos para se enfiar no carro do Noddy ao fundo do corredor, e não são só as roupas que são pret-à-porter, é tudo, desde a comida encharcada em aromatizantes e conservantes e emulsionantes e outras coisas acabadas em –antes para tentar dar-lhe o sabor que deveria ter e não tem, até aos livros escolares com mais bonecos do que texto, e que trazem, além do manual propriamente dito, o livro de exercícios, o livro de apoio, o livro de correcção dos exercícios e o livro do índice dos vários livros componentes do livro, mais o CD-rom de apoio com mais bonecos e no qual basta clicar para a papa aparecer feita, habituamo-nos desde cedo à Cerelac e depois é o cabo dos trabalhos para a trocar por outra coisa, fala-se dos meninos da mamã da geração mileurista que não saem de casa da mãezinha nem por nada, só a pontapé, porque têm casa, mesa e roupa lavada sem gastarem um chavo, o que ganham é para estourar como se não houvesse amanhã, enfim, as criancinhas começam desde cedo a ter tudo sem se esforçarem, para quê abrir um livro para ver qual é a capital de Portugal se posso ir à Wikipedia, não tarda muito o e-escola que já passou a e-escolinha vai passar a e-pré-escolinha e na volta ainda iremos ver o e-berçário, é preciso habituar os meninos desde já a clicar e a navegar na net, e não esquecer os telemóveis topo de gama que servem para tudo menos para falar, e ainda nos vai acontecer como aos miúdos japoneses que de tanta sms já têm os polegares deformados, é o próximo passo na evolução genética, e para que é que os miúdos da escola se vão dar ao trabalho de fazer pesquisa para trabalhos se podem ir à net sacar algum que já alguém fez e apresentá-lo como seu, para quê mexer o rabo para fazer o que quer que seja se já está tudo feito e pronto, se a papinha já vem feita, a carne já vem temperada das prateleiras do hipermercado, para fazer um bolo é só abrir um pacote e despejar o conteúdo para dentro de uma forma, levar ao forno e já está, a vida está cada vez mais facilitada e mais difícil, já nos chamaram «geração rasca», depois «geração à rasca», a seguir «mileuristas» uns e «dinkis» outros, e atrevo-me a dizer que a geração a seguir à nossa vai ser a «geração-papinha-toda-feita», não quero ser velha do Restelo mas no nosso afã de dar tudo aos nossos filhos acabaremos por criar umas criaturas amorfas que não irão saber coisas corriqueiras e banais como cortar um limão a meio para espremer em cima de um bife, ou fazer uma soma de 10+10 sem usar a calculadora, coser um botão que se desprendeu, ou dobrar uma folha de papel para a meter num envelope ou usar um abre-latas manual, ou folhear um livro sem ser com o rato do computador, and so on…

08/Outubro/2008

A ouvir: Numb, Linkin Park

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