Já se passaram quase dois meses e a chave da casa ainda
continua no porta-chaves junto com as outras, embora aquela porta já se tenha
fechado de vez há muito, como os olhos da pessoa que lá morava. Fecharam-se as memórias à chave depois de abertas uma
derradeira vez, sabendo que não voltaria mais a ver aquelas paredes, que não
sei se foram as que vi durante dezassete anos ou que deixei de ver há vinte.
Por vezes dou comigo a recordar aquele dia, tão recente mas
estranhamente disfarçado de longínquo, talvez porque à distância as coisas doem
menos, e imagino-me um espectro fora de mim a pairar por cima da minha cabeça,
a observar o meu ar aparvalhado-aturdido-incrédulo a olhar pela última vez para
aquelas paredes.
A parede do meu
quarto, já não forrada de papel às flores cor-de-rosa e com os arranhões que um
gato desesperado em fuga eternizou nela, a janela não de madeira velha mas uma
moderna.
A alcatifa do antigo quarto dos meus irmãos queimada do
ferro de engomar — engomar, não, passar, ali «engomar» é meter goma na roupa.
O roupeiro de portas desconchavadas com os autocolantes da Bravo e os recortes do Se7e colados na
parte de dentro das portas.
O aspirador com mais anos do que eu e que sempre me recordou
uma gigantesca panela de pressão com rodinhas que também serviu para assustar
gatos e apanhar ratos.
As portas interiores com as fechaduras estragadas desde que
há memória.
A tosca sapateira de madeira em cima da qual espalhava os
meus brinquedos, as panelinhas e os tachinhos.
A omnipresente
estante escura, já sem o gira-discos nem as enormes colunas empoleiradas lá no
alto, mas ainda com o elefante de louça e dentes de marfim verdadeiro, com a
sua tromba erguida a presidir majestoso à sala.
A garrafeira que de tantos anos conter garrafas acabou por
ganhar o cheiro a álcool do vinho do Porto e a anis.
As portas que guardavam as loiças que só saíam em dias de
festa, o prato de vidro castanho para os figos do Natal, o de vidro verde para
os bolos e o ananás, as malgas de faiança de um amarelo gritante das quais já nem
me lembrava até voltar a vê-las naquele dia, as tacinhas de vidro que vinham de
brinde nos pacotes do Juá.
Os meus talheres de bebé, os inofensivos garfo e faca com
bonequinhos. A colher foi engolida pelo buraco negro do tempo ido.
Os armários da cozinha, forrados a papel colorido.
O cheiro acre a gás da gaveta dos fósforos, que parecia
entranhar-se na pele de cada vez que a abríamos.
O ruído das argolas dos cortinados ao corrê-los.
A parede da casa do vizinho por onde se espraiava o maracujazeiro
que se vê por trás de mim em algumas fotos antigas, da altura em que ainda não
fugia das objectivas como o gato da água.
Nada disto está lá agora. Apenas paredes nuas, sem conteúdo,
vazias de lembranças. E a Teresinha, que
teve de atravessar a fronteira ao colo da Júlia para os guardas não implicarem,
um dos poucos sinais meus que ainda havia dentro daquelas paredes, a Teresinha mimada a quem vestíamos
casaquinhos de malha no Inverno para a menina não se constipar e vestidinhos de
manga curta no Verão por causa do calor, a Teresinha
das botinhas de lã cor-de-rosa com pompons a imitarem cabeças de
pintainhos, estropiada da humidade e do passar dos anos, foi para o lixo.
A distância atenua as dores. A distância poupou-me a ter de
desenterrar por uma última vez todas aquelas lembranças antes de as fechar à
chave para sempre. Com o tempo, as lembranças acabarão por se desvanecer como
as cores de uma fotografia que se vão perdendo. E com o tempo, talvez acabem
por doer menos.