O brilho das estrelas

Nunca consegui perceber o porquê da histeria colectiva por causa de alguém famoso, pessoas a gritarem e a arrancarem os cabelos e a desmaiarem por um caramelo qualquer, a percorrerem quilómetros para obterem um autógrafo, a aguentarem estoicamente horas e horas a fio, ou até mesmo dias inteiros, só para poderem estar perto da «estrela», como as crianças que passaram noites ao relento à espera de um concerto que acabou por nem se realizar — quando era criança as preocupações principais dos meus pais e de todos os pais que conhecia eram ter sempre comida para dar aos filhos e um tecto seguro para que nunca tivéssemos de dormir ao relento, mas as coisas mudam, hoje em dia o importante é deixar as criancinhas felizes a qualquer preço, mesmo que depois a consequência disso sejam jovens delinquentes a roubar nas lojas ou nas escolas e a atacar as professoras a murro e empurrão por causa dos telemóveis —, adiante, e ponho-me a pensar no que passará pela cabeça de determinadas pessoas para se rebaixarem dessa maneira, porque sim, para mim é impensável chorar baba e ranho por causa de um artista, seja ele quem for, qualquer forma de expressão artística, qualquer obra, seja um livro ou um quadro ou uma canção ou o que for existe por si só independentemente de quem a criou, gosto dos livros do Bret Easton Ellis e do Milan Kundera e da Siri Hustvedt e do Eugénio de Andrade mas quero lá saber das vidas deles para alguma coisa (admito que fiquei triste quando o Eugénio morreu, mas pronto, todos nós falhamos de vez em quando), gosto de ver filmes do Pedro Almodóvar e do Tim Burton e do Spike Jonze e do David Fincher e do Alejandro Amenabar e do Iñarritu e do Cuarón mas fico-me por aí, se são gays ou hetero ou casados ou divorciados ou gordos ou magros é lá com eles, adoro ouvir o Nick Cave e os Depeche Mode e o Leonard Cohen e o Bryan Ferry e os Linkin Park mas nem nos meus sonhos mais bizarros seria capaz de fazer o que aquelas criancinhas fizeram por causa dos Tokyo Hotel (admito que Monsoon até é gira, mas não passa daí), e pergunto-me o que passará pelas cabeças dessa gente, e para quê as revistas cor-de-rosa e as suas parangonas da fulana que se divorciou ou do sicrano que foi fotografado a comprar cuecas ou da cantora (????) que paga uma enormidade por um bife para o chihuaha, será que as pessoas reagem assim por causa da sua menoridade, do seu eterno complexo de inferioridade, o mesmo sentimento que as leva a acreditar em divindades mas que neste caso são de carne e osso, e vivem para elas da mesma forma que uma freira ou um padre vive para Deus, todos os dias rezam nos altares que têm em casa às efígies ou o que quer que seja das ditas estrelas, se necessário for até deixam de comer para conseguirem comprar os CDs ou os livros ou os bilhetes dos concertos, perdem horas e até dias em discussões sobre se o/a cantor/a se fica melhor de blusão de cabedal preto ou de T-shirt justa com os bíceps à mostra a la Marlon Brando no Há Lodo no Cais, organizam-se em clubes de fãs que mais parecem congregações religiosas, é preciso rezar e seguir a estrela para todo o lado, ter o autógrafo da criatura nem que seja na roupa interior — acho que o único autógrafo que alguma vez seria capaz de pedir seria a Deus, e unicamente para ter uma prova física de que existe mesmo — «ai, toquei-lhe no casaco, nunca mais vou lavar as mãos para poder manter o toque dele(a), e dou comigo a achar que se calhar não passamos de traças que se sentem irremediavelmente atraídas pela luz, pelo brilho, mesmo que esse brilho não passe de uma ilusão.

26/Março/2008

A ouvir: Shout, Simple Minds

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