Parece que hoje a cor de alguns distritos é o amarelo. Serei só eu a achar estes alarmismos climatéricos um disparate? Bolas, em que mês estamos? Agosto? Não, é Dezembro. Ah, Dezembro, o mês em que começa o Inverno no hemisfério Norte, não é verdade? Dezembro, Natal, neve, frio, chuva e vento. Pelo menos costumava ser assim, na noite de consoada o frio era tão característico como o peru e o bacalhau... honestamente, alguém se surpreender por estar frio em Dezembro? E de mais a mais, este sistema está um bocadito desactualizado, para além de ser altamente discriminatório: cadê o alerta roxo, o rosa, que até são cores da moda, o preto, o castanho, o fúcsia, o grená, o bordeaux, o azul-celeste, o azul-cobalto, o azul-petróleo, o alerta verde-garrafa, porque não, o amarelo-limão, o amarelo-canário, o bege, o cobre... Assim não tem piada, o sistema do verde-amarelo-laranja-vermelho é tãaaaaaaaaaao aborrecido, que tal não criarem um novo sistema, com mais cores, de preferência pagando uma enormidade a um designer de renome tipo Armani, Marc Jacobs ou Tom Ford (voto neste último), assim como o outro fulano fez com o Ghery na Câmara Municipal de Lisboa em que o fulano recebeu uma exorbitância para nada, enfim, já me estou a alongar demasiado, o que queria dizer basicamente é que estas pseudo-notícias dos alertas amarelos, vermelhos, laranjas e cor de burro quando foge só servem é para encher chouriços, e era bom que não se brincasse com coisas sérias, porque o rapazinho tanto gritou lobo que quando o lobo veio mesmo já ninguém lhe deu ouvidos...
Penas de peru
Na semana passada um peru teve honras de primeira página e tornou-se vedeta em todo o mundo, uma espécie de Paul Potts ou Susan Boyle versão alada, e como tantos outros, o Courage estava destinado a ir parar à assadeira e a ser recheado com molho de arandos, à semelhança dos milhões e milhões de bichos da sua espécie que os americanos adoram consumir no dia de Acção de Graças (nunca consegui perceber este feriado americano, mas se fosse só isso que não percebi acerca desse «povo» estava eu bem), e o animalzito lá deveria estar resignado à sua sorte, tipo «gluglu,ok, estou no corredor da morte, engordaram-me gluglu e agora é a minha vez de ir ocupar o lugar legítimo dos perus na cadeia alimentar, gluglu, é este o meu destino, vou morrer para poder engordar ainda mais algum redneck obeso, mas desta vez estou um patamar acima dos meus irmãos perus, hehehe, eu, o grande Courage, vou alimentar aqueles humanos que moram naquela casa branca que tem um jardim relvado grande e umas colunas muito feias no frontispício, parece que mora lá gente importante, gluglu, não sei quem são as criaturas mas em todo o caso isso não me interessa, dentro em breve vão cortar-me o pescoço e ao fim da noite já estarei dentro das barrigas deles a ser derretido pelo suco gástrico», só que afinal o Courage foi um bicho cheio de sorte, naquele dia não morreu e não foi exibido numa mesa, assado, em cima de uma travessa de porcelana com mais anos de existência do que os próprios States - também não é preciso muito, diga-se de passagem -, estava eu a dizer que o Courage teve sorte porque afinal um dos gajos que mora naquela casa branca com colunas feias, um que pelos vistos tem o poder de decidir se alguém vive ou morre decidiu que o Courage deveria viver, e assim o bicho salvou-se de lhe cortarem o pescoço e de ir parar a uma assadeira no meio de batatinhas e de ser regado com molho de arandos, «bolas, não me importo de ser esventrado, depenado e recheado, mas o molho de arandos não, por favor, ponham-me antes molho de maçãs verdes, cheira melhor e não deixa nódoas tão feias», dizia eu que o Courage safou-se por agora, e digo por agora porque mais cedo ou mais tarde o bicho há-de efectivamente ir parar ao bandulho de algúem, seja do Obama ou de outro gajo qualquer, e o que é irónico nisto é que o Courage, que estava já conformado com o seu destino de peru que tem de morrer porque é a lei da natureza, os perus têm de ir parar à panela para que os humanos os possam comer, é certo e sabido que é assim (os vegetarianos que me perdoem mas é a pura verdade), e há milhares de humanos que não têm qualquer papel na cadeia alimentar, milhares de humanos que mataram e violaram e estropiaram e cometeram crimes inomináveis e que por esse motivo alguém decidiu que deveriam morrer, milhares de humanos nas cadeias americanas à espera que o seu destino final seja cumprido, mas o presidente Obama, o messias salvador da pátria e do mundo (isn't it the same?, perguntarão alguns), o Obama que até já levou sem saber muito bem como o Nobel da Paz para casa - tecnicamente a entrega será só no mês que vem, mas pronto, vocês percebem a que me estou a referir), o Obama preferiu indultar um peru, enquanto há gente nas cadeias à espera que ele tome uma decisão semelhante e que os salve da morte certa.
De facto, há perus com sorte.
30/11/2009
A ouvir: This is War, 30 Seconds to Mars
O Teté
Para uma criança criada numa família supersticiosa e medrosa, o Teté tinha um ar assustador. Diziam que ele era maluco, e os malucos são sempre perigosos. De cada vez que o via, fugia: com peso a mais, lábios muito grossos, rosto rubicundo e olhos aterradores, esbugalhados, escuros e brilhantes, de uma idade que para mim era indeterminada mas que lá no fundo sabia ser pouca. Diziam-se imensas coisas acerca dele, que era doido, que atacava as pessoas, que era perigoso, enfim, tudo aquilo que normalmente as pessoas ignorantes dizem acerca das pessoas com deficiência mental. Influenciada pelo que me diziam, fugia do Teté como o porco da faca. Se o visse na rua, atravessava para o outro lado, quase a tremer de medo. «Ele é maluco, foge dele», insistiam. E eu fazia o que me mandavam.
Um dia, no aniversário do meu irmão mais velho, o Teté apareceu lá em casa. O meu irmão tinha-o convidado. Tenho uma memória vívida, mas talvez falsa, de nessa tarde a minha mãe ter entrado pela sala adentro furiosa porque a coelha preta e branca que parira nove coelhinhos na semana anterior tinha morrido, mas devo estar enganada porque recordo-me que no dia da morte da coelha estava muito calor (aliás, foi por isso que a bicha bateu a bota) e o meu irmão faz anos em Janeiro. Adiante. Recordo-me nitidamente de ver o Teté sentado numa cadeira junto à porta que dava para o corredor, com uma camisola preta de gola alta, barba de vários dias, com os olhos escuros muito abertos e brilhantes, a boca grossa entreaberta e os lábios húmidos, com um copo de Frisumo na mão, e de as pessoas lhe perguntarem se ele estava bem e de ele responder a dizer que sim com a cabeça repetidamente, «eu porto-me bem, eu porto-me bem, o Teté porta-se bem», numa litania ininterrupta. Ia-o observando pelo canto do olho, fingindo que admirava o bolo coberto com glacê branco e cor-de-rosa e bolinhas prateadas, uma inovação (em 1982 nem sequer havia continentes nem modelos nem jumbos para comprar bolos de aniversário, só pingo doce e mesmo assim era no Porto) e nesse dia percebi finalmente que o Teté era uma pessoa, não um monstro aterrador como me diziam que era, uma pessoa de carne e osso, sensível como qualquer outra — talvez mais —, que comia bolo com glacê branco e cor-de-rosa e bebia Frisumo como qualquer jovem normal da idade dele, e deixei de ter medo dele.
Os anos foram passando e fui deixando de me cruzar na rua com o Teté. Um dia, penso que igualmente em Janeiro, soube pela minha mãe que tinham encontrado o corpo dele na praia do Furadouro, gelado e roxo. Ao que parecia o Teté tinha morrido de hipotermia, e apesar de nunca ter falado sequer com ele, não consegui evitar sentir-me triste por saber que ele tinha morrido de frio, e ao mesmo tempo zangada com todas as outras pessoas do mundo que permitiram que alguém morresse de frio, e por saber que o Teté morrera sozinho, como um animal. Penso que nem quarenta anos tinha.
O Teté não era maluco. Tinha uma deficiência mental — nunca soube qual era. Porém, as pessoas tratavam-no como se ele tivesse a peste, como se ele fosse de facto louco e a dita loucura fosse contagiosa. Mas as deficiências não são contagiosas, a irracionalidade das pessoas é que é. Tenho pena de só ter aprendido isso naquela tarde, quando tinha cinco anos.
Um dia, no aniversário do meu irmão mais velho, o Teté apareceu lá em casa. O meu irmão tinha-o convidado. Tenho uma memória vívida, mas talvez falsa, de nessa tarde a minha mãe ter entrado pela sala adentro furiosa porque a coelha preta e branca que parira nove coelhinhos na semana anterior tinha morrido, mas devo estar enganada porque recordo-me que no dia da morte da coelha estava muito calor (aliás, foi por isso que a bicha bateu a bota) e o meu irmão faz anos em Janeiro. Adiante. Recordo-me nitidamente de ver o Teté sentado numa cadeira junto à porta que dava para o corredor, com uma camisola preta de gola alta, barba de vários dias, com os olhos escuros muito abertos e brilhantes, a boca grossa entreaberta e os lábios húmidos, com um copo de Frisumo na mão, e de as pessoas lhe perguntarem se ele estava bem e de ele responder a dizer que sim com a cabeça repetidamente, «eu porto-me bem, eu porto-me bem, o Teté porta-se bem», numa litania ininterrupta. Ia-o observando pelo canto do olho, fingindo que admirava o bolo coberto com glacê branco e cor-de-rosa e bolinhas prateadas, uma inovação (em 1982 nem sequer havia continentes nem modelos nem jumbos para comprar bolos de aniversário, só pingo doce e mesmo assim era no Porto) e nesse dia percebi finalmente que o Teté era uma pessoa, não um monstro aterrador como me diziam que era, uma pessoa de carne e osso, sensível como qualquer outra — talvez mais —, que comia bolo com glacê branco e cor-de-rosa e bebia Frisumo como qualquer jovem normal da idade dele, e deixei de ter medo dele.
Os anos foram passando e fui deixando de me cruzar na rua com o Teté. Um dia, penso que igualmente em Janeiro, soube pela minha mãe que tinham encontrado o corpo dele na praia do Furadouro, gelado e roxo. Ao que parecia o Teté tinha morrido de hipotermia, e apesar de nunca ter falado sequer com ele, não consegui evitar sentir-me triste por saber que ele tinha morrido de frio, e ao mesmo tempo zangada com todas as outras pessoas do mundo que permitiram que alguém morresse de frio, e por saber que o Teté morrera sozinho, como um animal. Penso que nem quarenta anos tinha.
O Teté não era maluco. Tinha uma deficiência mental — nunca soube qual era. Porém, as pessoas tratavam-no como se ele tivesse a peste, como se ele fosse de facto louco e a dita loucura fosse contagiosa. Mas as deficiências não são contagiosas, a irracionalidade das pessoas é que é. Tenho pena de só ter aprendido isso naquela tarde, quando tinha cinco anos.
11/11/2009
A ouvir: Last Goodbye, Jeff Buckley
Black and blue
Falava-se à boca cheia que a S. levava do namorado. Tinha mais dez anos que ela, divorciara-se da mulher e estava constantemente a pedir-lhe o dinheiro que ela ganhava a trabalhar enquanto estudava. Certo dia, ela apareceu na faculdade com os dois olhos enfeitados por manchas negras, a cara inchada. Perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido. «Bati contra uma porta», respondeu-me. «E magoaste os dois olhos?», insisti, olhando-a bem no fundo dos olhos, através das manchas que os cercavam e que nem a maquilhagem tinham conseguido disfarçar.
Ela encolheu os ombros, esboçou uma tímida tentativa de sorriso e baixou os olhos. «E como raio fizeste uma coisa dessas», insisti, «para teres feito esse serviço à cara? Bateste de frente, foi?»
Ela sorriu mas não respondeu. Depois, absorta com os meus próprios botões, acabei por esquecer o assunto e nunca mais lhe fiz perguntas.
Estava um calor de rachar. Ainda assim, a C. andava de gola alta, de mangas compridas e calças. O Sol convidava ao bronze, mas a C. estava cada vez mais pálida, cadavérica e com ar doente. Os olhos cada vez mais encovados faziam-me lembrar um coelho assustado. Uma conversa de circunstância com o guarda nocturno enquanto ambos esperávamos o autocarro deixou-me esclarecida.
«Estive quase para me meter», confessou-me ele, indignado. «Vi-a a correr por ali abaixo, e depois ele apareceu a correr atrás dela e deixou um empurrão e a rapariga caiu ao chão», disse-me, e depois deu uma passa no cigarro. «Depois deu-lhe dois pontapés e quando ela se levantou, ele deu-lhe uma bofetada e atirou-a outra vez ao chão.» Nova passa. «Filho-da-puta! Aquilo não se faz. Desgraçada da miúda!» Mais uma baforada de fumo, enquanto o ouço em silêncio, e a seguir diz, em jeito de desculpa: «Sabe, eu não me quis meter, entre marido e mulher não se deve meter a colher, mas meteu-me impressão vê-lo ali a bater na rapariga, e não poder fazer nada...»
Abanei a cabeça, sem saber o que dizer. Se tivesse presenciado a situação, talvez tivesse feito o mesmo, não sei. Mas a partir daí nunca mais consegui olhar para o P.S. sem sentir um nó de nojo misturado com raiva a apertar-me o estômago.
A R. tinha três cadeiras atrasadas. Nos primeiros dias da época de exames, o pai deu-lhe uma tareia tão grande que ela teve de ficar de cama durante duas semanas. Fugiu de casa. Anos de psiquiatras e caixas de fluoxetina depois, vi-a dias depois de uma biópsia que fez para tentar determinar um problema de saúde. Não parecia ter 25 anos, parecia ter mais 50 em cima. A certa altura vi na televisão que um homem tinha sido assassinado pela filha, em legítima defesa, no bairro onde ela morava. Só consegui voltar a respirar depois de ter falado com a R. para me certificar que não tinha sido nada com ela.
A A. estava a estudar juntamente com a P., cada uma na sua secretária. De súbito, vindo do nada, aparece o G., namorado da P., entra de rompante por ali adentro, agarra nela pelos cabelos, atira-a ao chão e desata aos pontapés a ela. Sempre na presença da A., uma miúda de 18 anos acabada de sair das saias da mãe, que ficou ali tolhida de terror, a pensar que provavelmente seria a próxima. Quando se fartou, foi-se embora. Mas a P. continuou a namorar com o G., e continuou a levar tareias.
Todas estas raparigas eram universitárias. Todas estas raparigas eram vítimas de violência extrema. Todas elas eram muito jovens.
E nunca ninguém levantou um dedo contra os seus agressores.
Sangue fresco
Ao ver no jornal a notícia de um acidente de autocarro há uns quantos dias fiquei com o estômago revirado, não por causa do acidente em si mas sim por ter visto nas fotografias que acompanhavam a notícia uma centena de mirones que assistiam à evacuação dos feridos e trabalhos de desencarceramento como se se tratasse de algum espectáculo, e sinceramente senti nojo, uma onda de náusea a percorrer-me por causa daquelas criaturas abjectas que ali estavam, por que carga de água estavam ali, qual é o gozo de estar a ver pessoas com braços decepados a jorrarem sangue, filhos a gritar pelas mães e mães a gritarem pelos filhos, a ver o sangue fresco a escorrer, se pelo menos ainda estivessem ali para ajudar, mas não, era apenas pelo prazer de ver o sangue fresco a correr, céus, qual é o gozo que dá ver uma coisa dessas, ainda há meses parei na A23 por causa de um acidente acabadinho de acontecer, tão fresquinho que ainda havia no ar uma nuvem de pó levantada pelo carro quando capotou e, à semelhança de alguns condutores, também nós parámos para tentar dar assistência, já havia alguém a telefonar para o 112, e uma ambulância de transporte de doentes também tinha parado e aberto as portas para tentarem fazer o que pudessem, enquanto outros ajudavam os passageiros a sair do carro e uns dois ou três se encarregavam do condutor que estava encarcerado lá dentro, e a certa altura aproximei-me de uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, a segunda pessoa a sair do carro, para lhe perguntar se ela estava ferida (aparentemente não tinha nada) mas a pergunta morreu-me nos lábios quando ela ergueu a mão direita, ou o que restava dela, uma visão grotesca sem três dos dedos cortados e a esguichar sangue, enquanto a palma da mão tinha sido literalmente arrancada de forma a conseguir ver os ossos e os tendões todos, e mesmo através da mão, e eis que ela começa a gritar desvairadamente «a minha mão! a minha mão!», um grito desesperado que me ficou gravado na memória, e eu ali pregada ao chão sem conseguir articular um som que fosse, com os olhos presos àqueles restos da mão dela, muda de choque, e senti-me envergonhada por não ter conseguido reagir e manter o sangue frio e dizer-lhe para levantar a mão para estancar o sangue e procurar um trapo para fazer um torniquete ou mesmo tentar acalmá-la, não, não fiz nada disso, fiquei ali gelada até ter começado a tremer e voltado para o meu carro com o rabo entre as pernas, a amaldiçoar-me por dentro por não ter sido capaz de ajudar, e por isso não consigo perceber o prazer que aquela gente sentiu ali a altas horas da noite, de pé, a assistir àquele espectáculo macabro de sangue a escorrer, como se fossem os romanos nas arenas, e acabei por concluir que mesmo que nos denominemos civilizados, evoluídos, no fundo não passamos de animais que se excitam com o cheiro e a visão do sangue, por mais que queiramos distanciar-nos das bestas não conseguimos, porque o gosto pelo sangue faz parte de nós, e talvez o voyeurismo e o gosto pelo sangue seja de facto aquilo que nos torna iguais às bestas.
04/11/2009
A ouvir: Mercy Seat, Nick Cave
Azahar
Azahar veio para Portugal, fechada numa gaiola enfiada na caixa de carga de uma carrinha comercial. E não, Azahar não é uma imigrante ilegal daquelas que todos os dias saem de África rumo a uma vida melhor na Europa via Canárias, enfiadas em contentores nos porões de navios e que muitas vezes chegam ao destino já mortas. Azahar é uma fêmea de lince ibérico que nuestros hermanos remeteram para Portugal para evitar o fim da espécie - de Espanha também vêm coisas boas, o que julgam? Pensam que é só nereidas e maus ventos e maus casamentos? - e mais quinze se seguirão à Azahar, e podem pensar como é possível que um coelho fale de linces, se é certo e sabido que para um lince coelho significa almoço, mas pronto, a campanha do «Salvem o lince da serra da Malcata» com que nos bombardearam na escola primária nunca me saiu da cabeça, sempre admirei os felinos pela sua independência, quer fossem gatinhos ou gatões, e se fechar os olhos parece que ainda consigo visualizar o cartaz da campanha para salvar o lince, com o bicho a olhar para nós em tom acusador, enfim, vi há pouco um vídeo da pobre Azahar aterrorizada com as orelhas baixas de pânico e ar de quem está morto de medo, e não pude deixar de sentir pena do pobre bicho, coitadinha, devia estar a pensar «que horror, vão levar-me para Portugal, aquele país do Terceiro Mundo, o que irá ser de mim?», e de certeza que a esta hora aqueles que viram o vídeo ou leram a notícia devem estar a escrever comentários nos jornais online a culpar o Sócrates (não o grego, o outro) pela quase extinção dos linces, ainda para mais porque o homem nasceu para os lados da Malcata, portanto a culpa é dele, e porque raio é que andam a gastar dinheiro para tentar salvar o diabo dos bichos, se depois eles vão comer os coelhos todos e depois já não vai haver nada para caçar, que chatice, raios os partam, mas se virmos bem as coisas, a conservação das espécies tem de ser feita mesmo que custe dinheiro (o que é que não custa?) e que estejamos em época de crise (a sério?), porque na natureza tudo é equilíbrio e se uma peça falha, tudo descamba, os próprios linces começaram a desaparecer por causa da falta de coelhos para comerem - acho que devem ter todos fugido para capas de livros, a julgar pelos últimos lançamentos - e além da Azahar também deveriam pensar nos lobos, não é só mostrá-los todos bonitinhos nas telenovelas e em anúncios a perfumes, é preciso preservá-los, sei que o Capuchinho Vermelho não deve concordar comigo mas azar o dela, linces e lobos não podem desaparecer, e sinceramente desejo a melhor das sortes à Azahar, que ela seja feliz e tenha muitos lincezinhos para que a sua viagem não seja em vão.
26/10/2009
A ouvir: Taya Tan, Pink Martini
Tenho saudades...
Tenho saudades do «Tou Xim?» da Telecel, que agora já nem Telecel é, é Vodafone, e agora de cada vez que vejo um anúncio à Vodafone (atenção, fanhosos, a pronunciarem a palavra...), dizia eu que de cada vez que vejo um anúncio à Vodafone penso «mas que raio é que estes tipos andam a fazer?», talvez o problema seja meu, mas sinceramente não consigo compreender os anúncios deles, um fulaninho escanzelado com ar pateta armado em roqueiro a grasnar «tumpz-tumpz-tumpz» enquanto abana a cabeça, ou pessoas a explodirem em nuvens de penas - porquê penas? Tratar-se-ão de patos? Se a ideia é mandar gente pelos ares, porque não tripas e sangue e pedaços de braços e de pernas? - ou então os spots de rádio, em que uma fulana de voz emproada pergunta o que lhe podem conseguir com dez euros em dez horas, que diabo é isto, não sabem fazer anúncios como deve ser, com um pastor de ar feliz no meio de um rebanho de ovelhas expectantes a olharem para o aparelho e depois o homem a agarrar nele e a dizer com aquele tom inconfundível que ficou gravado no cérebro de milhões de pessoas, «tou xim?... É pra mim!», a sério, tenho pena que já não se façam anúncios assim, se temos de gramar com anúncios a telemóveis de cinco em cinco segundos, ao menos que eles sejam de qualidade (os anúncios, claro!), e já agora, não haverá por aí ninguém que queira escrever um «Publicidade para Totós»?
08/10/2009
Estou de dieta
(Aviso: escrito com o modo nonsense on.)
Decidi fazer dieta, mas uma dieta especial: deixei de ler jornais, de ver notícias na televisão, de ouvir notícias na rádio e tudo o que implique recepcionar «informação»; agora limito-me a ler os títulos nos jornais online, e mesmo assim não é em todas as secções, e desta forma tento combater a já mítica obesidade mental aventada pelo mítico Andrew Oitke que nunca se chegou a saber se existia ou não, pelo menos nunca conseguir encontrar o dito livro que o homem supostamente escreveu, mas pelo sim pelo não, resolvi dar-lhe ouvidos e combater o excesso de informação que todos os dias nos entra pelo cérebro adentro, porque agora tudo é notícia, uns dizem que o acidente de triciclo em Alguidares de Baixo provocou um despiste de meia dúzia de carrinhos de linhas enquanto outros já prevêem uma guerra civil com a população enfurecida de Alguidares de Cima, ainda há dias li uma notícia sobre um suposto Jean Valjean que roubou um cachorro quente numa terriola qualquer na terra do Tio Sam e foi condenado a dezoito meses de cadeia, a dita notícia não referia era se o Jean Valjean dos tempos modernos tinha cadastro, se a pena foi efectivamente pelo roubo ou por posse de arma ilegal, ou por exemplo por desrespeito à autoridade, tipo «o-que-é-que-queres-ó-cabrão-pensas-que-por-teres-uma-farda-não-levas-nos-cornos-como-os-outros?», enfim, durante muito tempo ainda tentei — juro que tentei, mesmo, MESMO — separar o trigo do joio, separar o arroz de polvo malandrinho do puré de batata de pacote a saber a cartão canelado, a vitela assada com alecrim e rosmaninho das batatas fritas pré-congeladas e inundadas em óleo usado e queimado, tentei optar por uma alimentação mental saudável, com uma escolha criteriosa da informação que recolhia, dos jornais que lia, dos telejornais a que assistia, dos programas que via, mas foi em vão, a fast food mental assalta-me a toda a hora, posso recusar delicadamente o jornal gratuito que o distribuidor brasileiro tenta à força enfiar-me debaixo do braço — ok, por vezes não era delicadamente, admito — mas depois quando entro num café ou vou a casa de alguém tenho de gramar com a televisão aos berros a debitar notícias sobre as formigas electrocutadas nas pistas de carrinhos de choque da festa da Nossa Senhora dos Caramelos, ou o rádio a noticiar estudos sobre a relação existente entre a cor da casa e o salário auferido, enfim, já nem sei o que estou para aqui a escrever, o que sei é que fiquei enjoada com tanta fartura e estou num ponto em que já não sei o que é verdade ou mentira, o que é bife do lombo e o que é carne enlatada rançosa e a escorrer banha, e por isso decidi fazer uma dieta de informação, não sei se temporária ou permanente, para evitar que o meu pobre cérebro fique obeso.
07/10/2009
A ouvir: Blow, Wind, Blow, Alison Moyet
A morte de Bunny Munro
Bunny Munro, o caixeiro-viajante viciado em sexo e que dá uns certos ares de zezé camarinha, é uma daquelas espécies em vias de extinção, porque hoje em dia as vendas porta-a-porta estão em agonia, é um sinal dos tempos, o que se há-de fazer, já ninguém abre a porta de casa a estranhos, quer sejam os vendedores do Círculo de Leitores quer os brasileiros a tentar convencer-nos a aderir a serviços de internet e tv cabo e telefone e o diabo a quatro, não importa, vendedores porta-a-porta só mesmo as moças do tuppersex, e já nem as reuniões da Tupperware dão para nada, para quê gastar vinte euros numa caixa de plástico quando as há às toneladas nas lojas de chineses a um euro a dúzia e nas bancas de jornal como ofertas dos diários e revistas, e este Bunny inverosímil vende produtos de beleza a donas de casa desesperadas como se fosse uma jovenzinha da Avon, de cor-de-rosa dos pés à cabeça, com unhas rosa-pastel e laca Elnett a fixar o capacete de cabelo, loiro comme il fault, mas Bunny não se veste de cor-de-rosa, usa sim umas gravatas com os omnipresentes coelhos oferecidas pela mulher que se enforcou numa grade no próprio quarto de ambos, e não usa Elnett no cabelo e sim brilhantina, nem sequer gel, é mesmo brilhantina, o retro no seu melhor, com a poupinha à Elvis e tudo na cabeça, e aí vai este pintas pelas ruas adiante no seu Punto - não me lembro de que cor, mas apostaria que é amarelo -, mas adiante, não sou preconceituosa, o Bunny pode usar o cabelo como quiser e as gravatas que bem entender, isso não me faz confusão, o que me choca (ou talvez não) é a decadência presente em todas as páginas do livro, numa época em que a perfeição anda lado a lado com o horror, é-nos exigido sempre mais e melhor, que sejamos perfeitos, impecáveis, e por isso passamos o verniz, fingimos que somos efectivamente perfeitos, belos, inteligentes, felizes e tudo o mais, mas se arrancarmos a camada que nos reveste veremos que no fundo somos Bunny Munros a andar de porta em porta, não a vender produtos de beleza, mas sim em busca do belo, e aí vamos nós todos aperaltados, com gravatas aos coelhos ou não, à procura daquilo que gostaríamos de ter mas que de há tanto tempo perdido já nem sabemos como é.
22/09/2009
A ouvir: Nick Cave & The Bad Seeds, People Ain't no Good
Silly thought nº 1
O papão vem aí, mas há que ser positivo: não faltam os kits contra a gripe A compostos por máscaras, desinfectantes para mãos e vitaminas, e na minha opinião estão mal elaborados, já agora, se queriam fazer a coisa bem feita, teriam incluído folhetos da telepizza ou pizza hut ou qualquer outra de entrega ao domicílio para quando o pessoal estiver com fome e não puder sair à rua, é claro que depois o desgraçado do entregador pode apanhar o vírus mas na volta como é brasileiro não faz falta, de onde veio aquele vêm muitos mais, enfim, o que interessa é o cliente ficar satisfeito e o entregador que se lixe, e quem diz os da pizza diz os outros, que não nos deixam ficar mal quer faça sol ou chuva - e há uma relação directa entre a quantidade de precipitação e os pedidos de entrega de comida ao domicílio, só superada pela dos dias em que há jogo grande -, mas pronto, se virmos bem as coisas este vírus é um maná, não só para os laboratórios como para tudo o que é serviços online, ainda não se lembraram de um «Gripe A para Totós» mas não deve faltar muito, e a populaça vai ficando tão distraída com a ameaça do inimigo público número um (não, não é o John Dillinger) que se esquece dos verdadeiros problemas...
A brincar
Achei estranho que tivessem batido à porta quase às dez da noite, mas ainda assim fui abrir. Era a senhora Palmira, a vizinha de cima, que trazia duas bonecas enormes e muito sujas, uma em cada mão, penduradas pelos braços como se de crianças se tratassem. Tinha-as encontrado num dos quartos da casa da quinta em ruínas que a filha tinha comprado para restaurar, teve pena de as deitar no lixo, e então lembrou-se de as trazer para a minha mãe as dar a uma das minhas sobrinhas de dois anos para a miúda brincar.
Olhei para ela, depois para a minha mãe, e por último para as bonecas. Uma parecia uma senhora: cabelos castanho-escuros completamente empoeirados, um vestido de poliéster azul-turquesa com folhos de tule já meio comidos pelas traças, e de olhos azuis que abriam e fechavam, mas já sem pestanas. Os sapatos eram pretos, de plástico, uns sapatos normais de boneca. Tinha ar de ter aí uns vinte anos, a cara de borracha toda suja com os olhos azuis a fixarem-me. Era bonita, mas não me chamou a atenção.
A outra, essa sim, era uma boneca. Aos pulinhos de excitação, agarrei nela disposta a meter mãos à obra para a transformação total. A miúda podia ficar com a outra, mas esta ia ser minha, mais ninguém lhe ia meter as mãos. O meu entusiasmo era tal que arranquei a minha mãe à telenovela e arrastei-a comigo para cuidar da «menina», a minha fair lady. Sim, porque a segunda boneca assemelhava-se em tudo a uma menina de um ano e meio ou dois. A cara infantil de borracha estava suja como a da outra, e o cabelo, que lhe daria pelo queixo, era de um loiro platinado cinzento do pó de da fuligem acumulados durante anos de abandono. Os olhos enormes, castanhos, também abriam e fechavam, e a boca estava tapada por uma chupeta de plástico cor-de-rosa, daquelas que em tempos devem ter feito a boneca chorar ao ser retirada. Trazia um vestido de algodão que parecia ser branco, embora naquele momento estivesse castanho e sujo, com mangas de balão e bordados cor-de-rosa, umas meias que há muitos anos tinham sido brancas e uns sapatos cor-de-rosa de plástico maleável — ou seria borracha? Não identifiquei correctamente o material. Seja como for, eram gigantes, o equivalente a um tamanho 21 ou 22. O vestido estava imundo, com manchas castanhas por causa das pilhas do mecanismo para chorar que tinham derretido e vertido o líquido.
Arregacei as mangas e meti-me ao trabalho. Despi-lhe o vestido e, com a ajuda de uma chave de fendas, arranquei o mecanismo incómodo, e as pilhas lá estavam, completamente calcinadas. Depois de limpar a zona com o mesmo zelo de um enfermeiro a limpar uma ferida, voltei a colocar a tampa e passei para o resto do corpo. A minha mãe olhava para mim, entre divertida, confusa e intrigada, e seguia as minhas indicações. Lavámo-la como pudemos, esfregámos as manchas mais teimosas, até que a boneca ficou limpa. Embalada, lavei-lhe o cabelo com champô que cheirava a maçãs verdes. Eu e a minha mãe ríamos com a brincadeira, e referíamo-nos à boneca como a menina, a bebé. Enquanto eu me encarregava da «menina» e lhe esfregava os pontos mais críticos e encardidos com uma escova de dentes velha embebida em Cif, ela tratou de por as roupas dela em lixívia para recuperarem a brancura original.
Depois da boneca estar lavada e seca, fomos procurar roupas para lhe vestir. As da Teresinha eram-lhe pequenas — a Teresinha tinha o tamanho de um bebé de seis meses, e demos-lhe esse nome porque no babete que trazia ao pescoço estava escrito tiernecita, e com os meus seis anos da altura Teresinha pareceu-me um nome mais aceitável. Porém, esta era do tamanho da minha sobrinha, uma miúda de dois anos, e a tarefa foi mais complicada. Acabámos por deixá-la embrulhada numa toalha velha até o vestido branco com bordados cor-de-rosa e mangas tufadas estar seco e passado a ferro, e o retoque final foram os dois ganchinhos que fui comprar propositadamente para lhe meter no cabelo.
O resultado final superou todas as expectativas, e toda a gente que a via ficava estupefacta com a boneca, principalmente a senhora Palmira, que entretanto se deve ter arrependido de ma ter dado. Eu, de cada vez que olhava para ela, pensava que aquela noite tinha sido a única vez em que me recordava de ter brincado com a minha mãe, e que tinha vinte e dois anos quando isso aconteceu.
Olhei para ela, depois para a minha mãe, e por último para as bonecas. Uma parecia uma senhora: cabelos castanho-escuros completamente empoeirados, um vestido de poliéster azul-turquesa com folhos de tule já meio comidos pelas traças, e de olhos azuis que abriam e fechavam, mas já sem pestanas. Os sapatos eram pretos, de plástico, uns sapatos normais de boneca. Tinha ar de ter aí uns vinte anos, a cara de borracha toda suja com os olhos azuis a fixarem-me. Era bonita, mas não me chamou a atenção.
A outra, essa sim, era uma boneca. Aos pulinhos de excitação, agarrei nela disposta a meter mãos à obra para a transformação total. A miúda podia ficar com a outra, mas esta ia ser minha, mais ninguém lhe ia meter as mãos. O meu entusiasmo era tal que arranquei a minha mãe à telenovela e arrastei-a comigo para cuidar da «menina», a minha fair lady. Sim, porque a segunda boneca assemelhava-se em tudo a uma menina de um ano e meio ou dois. A cara infantil de borracha estava suja como a da outra, e o cabelo, que lhe daria pelo queixo, era de um loiro platinado cinzento do pó de da fuligem acumulados durante anos de abandono. Os olhos enormes, castanhos, também abriam e fechavam, e a boca estava tapada por uma chupeta de plástico cor-de-rosa, daquelas que em tempos devem ter feito a boneca chorar ao ser retirada. Trazia um vestido de algodão que parecia ser branco, embora naquele momento estivesse castanho e sujo, com mangas de balão e bordados cor-de-rosa, umas meias que há muitos anos tinham sido brancas e uns sapatos cor-de-rosa de plástico maleável — ou seria borracha? Não identifiquei correctamente o material. Seja como for, eram gigantes, o equivalente a um tamanho 21 ou 22. O vestido estava imundo, com manchas castanhas por causa das pilhas do mecanismo para chorar que tinham derretido e vertido o líquido.
Arregacei as mangas e meti-me ao trabalho. Despi-lhe o vestido e, com a ajuda de uma chave de fendas, arranquei o mecanismo incómodo, e as pilhas lá estavam, completamente calcinadas. Depois de limpar a zona com o mesmo zelo de um enfermeiro a limpar uma ferida, voltei a colocar a tampa e passei para o resto do corpo. A minha mãe olhava para mim, entre divertida, confusa e intrigada, e seguia as minhas indicações. Lavámo-la como pudemos, esfregámos as manchas mais teimosas, até que a boneca ficou limpa. Embalada, lavei-lhe o cabelo com champô que cheirava a maçãs verdes. Eu e a minha mãe ríamos com a brincadeira, e referíamo-nos à boneca como a menina, a bebé. Enquanto eu me encarregava da «menina» e lhe esfregava os pontos mais críticos e encardidos com uma escova de dentes velha embebida em Cif, ela tratou de por as roupas dela em lixívia para recuperarem a brancura original.
Depois da boneca estar lavada e seca, fomos procurar roupas para lhe vestir. As da Teresinha eram-lhe pequenas — a Teresinha tinha o tamanho de um bebé de seis meses, e demos-lhe esse nome porque no babete que trazia ao pescoço estava escrito tiernecita, e com os meus seis anos da altura Teresinha pareceu-me um nome mais aceitável. Porém, esta era do tamanho da minha sobrinha, uma miúda de dois anos, e a tarefa foi mais complicada. Acabámos por deixá-la embrulhada numa toalha velha até o vestido branco com bordados cor-de-rosa e mangas tufadas estar seco e passado a ferro, e o retoque final foram os dois ganchinhos que fui comprar propositadamente para lhe meter no cabelo.
O resultado final superou todas as expectativas, e toda a gente que a via ficava estupefacta com a boneca, principalmente a senhora Palmira, que entretanto se deve ter arrependido de ma ter dado. Eu, de cada vez que olhava para ela, pensava que aquela noite tinha sido a única vez em que me recordava de ter brincado com a minha mãe, e que tinha vinte e dois anos quando isso aconteceu.
31/08/2009
A ouvir: Alive, Pearl Jam
Meninas do papá
É no mínimo curioso que nunca ninguém tenha ouvido falar no pai da Cinderela, um fulano que deixou a desgraçada da filha nas garras da madrasta malvada e das duas meias-irmãs e pôs-se a andar para ir fazer sabe-se lá o quê, um pai como deve ser teria dito à mulher «ou tratas bem a minha filha ou ponho-te os patins», e o pai da Branca de Neve é outro que tal, como é possível que o tipo não soubesse o que a mulher andava a fazer, será que não sabia que a bruxa queria era limpar o sebo à garota, estaria assim tão cego pela mulher — sim, a madrasta da Branca de Neve era bonita, ao contrário do que o Walt Disney quis fazer crer —, dizia eu que estaria assim tão enfeitiçado pela beleza dela que não via as maldades que ela era capaz de fazer?, e o pai da Bela era outro que tal, que permitiu que o Monstro lhe ficasse com a filha para salvar a própria pele, o cobarde, enfim, estes pais dos contos de fadas saíram-me uns belos de uns palermas a permitirem que as filhas fossem maltratadas, massacradas, quase assassinadas — a troco de quê? —, e o engraçado disto é que estes contos foram adaptados por homens, os Grimm, o Perrault e outros que tais, adaptados de histórias que já existiam nos folclores de vários países, seria de esperar que como foram homens poderiam ter embelezado as coisas, tipo transformar um cobardolas que morre de medo da mulher num cavaleiro corajoso, mas não, não se deram a esse trabalho, e já agora onde anda o pai da Capuchinho, será que a miúda era órfã ou que quando apareceu o lobo o pai se escondeu debaixo da mesa a tremer de medo, e é pena que na altura não existisse nenhuma comissão de protecção de menores ou algo do género para proteger a Cinderela, a Branca e a Bela — bom, hoje existe e por vezes também não fazem nada — que pudesse arrancar as miúdas à guarda desses pais negligentes, enfim, mas vá lá que tudo acabou por se resolver e bem, apareceu o Príncipe e salvou a Cinderela e a Branca de Neve, e o Monstro transformou-se num quando o encantamento foi quebrado — e a Diana Spencer também deve ter esperado que o Carlos se transformasse mas não, coitada — e depois viveram felizes para sempre, dizem eles, e resta saber é se quando as jovens rainhas tiveram as respectivas criancinhas, se os Príncipes lhes mudavam as fraldas e os levavam a passear e brincaram com eles ou se fizeram como os desnaturados dos avôs, mas pronto, disso também ninguém fala.
20/08/2009
Inimigo público
Sim, já sei que já dei às patinhas por causa da gripe dos porcos, perdão, gripe A, que os porcos não têm culpa da histeria, mas como se costuma dizer na minha terra - e se calhar em muitas outras - vou voltar à vaca fria, e lá estou eu a falar de bichos, é sempre a mesma coisa, há quem diga que quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais mas isso é conversa a desenvolver noutro post, estava eu a falar da gripe A, e hoje de manhã em pé de conversa - a língua portuguesa é mesmo gira, «pé de conversa» como se as conversas tivessem pés e mãos, enfim - hoje de manhã falou-se da gripe e perdoem-se se estiver enganada, mas na minha humilde opinião de coelho desbocado acho até que estamos em vantagem em relação aos outros anos, porque gripe que é gripe, existe todos os anos, e o bicho é tão mau que muda anualmente, todos os anos temos de gramar com um diferente e ninguém sabe o que vai sair na rifa, mas este ano o inimigo público nº 1 tem um nome e não há ninguém no planeta - salvo os portadores de deficiência auditiva, que «surdo» é politicamente incorrecto - que não tenha ouvido falar dele, todos sabemos o nome do bicho, o que fazer para evitarmos o contágio, e mais, estamos todos à espera dele como um pelotão de fuzilamento pronto a disparar, já sabemos tudo o que nos é permitido saber sobre a criatura, estamos prontos - uns mais do que outros, é certo - para o embate, e se este ano conhecemos à partida o nosso inimigo, parece-me lógico acreditar que afinal, este ano, longe de estarmos à beira da catástrofe, estamos é em vantagem...
13/08/2009
A ouvir: The Ship Song, Nick Cave
A culpa foi do macaco
Já ando mais do que farta - e se a minha mãe lesse isto diria logo que quem se farta são os burros, não percebo porquê mas parece-me que é alguma reacção reflexa dela ao ouvir a palavra -, estava a dizer que ando mais do que farta das notícias do médico e dos medicamentos e do diabo a quatro do Michael Jackson, anda tudo empenhado em saber porque é que o gajo morreu, olhem, morreu porque morreu, é a única certeza que temos, um dia haveremos de morrer, mas como era o rei, o mundo quer encontrar um culpado, «como é possível, ele não podia morrer, quem foi o filho da mãe que o matou? Alguém teve de o matar», como se lá por o tipo ser o rei da pop não tivesse direito a morrer, as pessoas não se convencem que a obra é que é imortal e não quem a cria, enfim, e lá tratam de investigar e gastar mundos e fundos para tentar encontrar o culpado, com a situação económica dos States no estado em que está e aquela gente anda a gastar dinheiro dos contribuintes numa caça aos gambozinos, alguém tem de ter a culpa, seja o médico que lhe deu calmantes e medicamentos para isto e para aquilo, seja o cão da criada, a vida dele foi um circo e a morte um ainda maior, as pessoas não se lembram que o tipo tinha 50 anos e que há muitos bem mais novos que também já foram fazer tijolo, tudo bem que aos 50 ainda é cedo para morrer mas o que vamos fazer, shit happens, o homem morreu com um ataque cardíaco, e daí?, o Paulo também morreu aos 29 anos com um AVC e ninguém se preocupou em investigar porque é que ele o teve, ninguém acusou as pessoas que lhe deviam dinheiro de o literalmente terem matado de preocupação, mas lá está, o Paulo não era o rei da pop, ainda assim morreu jovem de uma maneira que uma pessoa de 29 anos não podia ter morrido, e no caso dele a culpa deve ter sido do macaco, e quanto ao Michael Jackson não pode ser, as estrelas não morrem, são assassinadas, levadas por aliens, raptadas por homens do governo que as levam para um programa de protecção de testemunhas e passam a ganhar a vida a tirar fotocópias ou a servir bejecas num bar obscuro, enfim, já nem sei o que estou para aqui a escrever, já não dava às patinhas há tanto tempo que acho que já perdi o jeito, mas pronto, o macaco tem as costas largas, e uma vez mais a culpa vai acabar por ser dele.
05/08/2009
A ouvir: Billie Jean, Michael Jackson
12 de Setembro de 1933
12 de Setembro de 1933 era a data de nascimento oficial, aquela que vinha no teu bilhete de identidade, e também aquela que está gravada na lápide da tua sepultura. Mas todos sabíamos que tinhas nascido a 9 de Julho, e era nessa data que havia o bolo, o espumante e presentes, um bolo de canela porque não gostavas de doces e o de canela escapava porque era escuro. Talvez gostasses de bolos escuros porque te davam a sensação de que não levavam o leite que tanto abominavas. Não sei se era esse o motivo, porque nunca tive oportunidade de te perguntar. Havia tanta coisa de que não gostavas que por vezes era mais fácil enumerar aquilo de que efectivamente gostavas. Era curioso, não comias carne nem doces nem natas nem tanta coisa de que não me lembro agora, mas ainda assim eras gordo. Quem olhasse para ti pensaria que comias como um alarve, como aquela médica do centro de saúde que tanto te ofendeu. Feijoadas, grandes bifes, assados, presunto, bolos a transbordar de creme e de natas, chanfanas, caldeiradas, tantas e tantas coisas, e tu, nada. Proteínas, só o omnipresente bacalhau comprado no Manel da Estação ou então trazido de Tui por algum conhecido, na altura em que quase não havia bacalhau à venda em Portugal, umas pescadas de quando em quando, sardinhas pequeninas refogadas, ou então das grandes e gordas, assadas na brasa, uma ou outra solha, e polvo. Lulas não, os tentáculos metiam-te impressão (como se o polvo fosse feito de asas). Os pequenos-almoços nunca variaram desde que me lembro. Todos os dias a mesma malga de café de saco, o teu «café preto» e um bocado de broa. Ah, e uma colher de sopa cheia de açúcar no café. Leite era um ódio de estimação da tua família, não havia um que escapasse, mas vá lá, admitias queijo flamengo uma vez por outra, de preferência com marmelada, e quando começaste a ficar verdadeiramente doente, lá acabaste por aceitar manteiga.
A rotina era de tal forma rígida que quase vinte anos depois ainda me lembro de tudo como se nos tivéssemos visto ontem. Acordavas com o trrrriiiim daquele despertador barulhento de latão, depois vestias-te, tomavas a malga de café com a broa - sempre a mesma malga, não podia ser outra qualquer - e depois ias trabalhar. Vinhas à hora de almoço, comias sempre no mesmo prato de vidro, o único em toda a casa que não era de faiança, com os mesmos talheres, diferentes dos outros porque não gostavas dos garfos e facas e colheres que tínhamos, e bebias sempre o vinho branco da mesma caneca castanha de barro vidrado com videiras. Depois deitavas-te na cama uns minutos e saías outra vez. Ao final do dia saías do trabalho, ias comprar o Comércio do Porto (se fosse sexta trazias também o Tal & Qual e registavas os totobolas e totolotos), e vinhas para casa. Quando dava vestias umas calças velhas e uma camisa com mais anos do que eu e ias cavar para a tua horta de estimação. Depois regressavas, lavavas-te e jantavas, e a seguir deitavas-te no sofá com o gato em cima da barriga a ver o Telejornal. No fim, vestias-te e ias «dar uma volta», o mesmo café de sempre no Café Império, as mesmas conversas com os mesmos amigos, o Calado, o das cassetes, o Bigodes, o Alcides, o Abel e o Russo, e lá para as onze voltavas para casa para no dia a seguir voltar a ser a mesma coisa.
Disto lembro-me, lembro-me de todas as coisas de que não gostavas, da minha irritação quando íamos ao café e obrigavas o empregado a trazer outro café porque querias que fosse numa chávena larga, da massa meada com chouriço de cada vez que a mãe se atrasava e não podia fazer o jantar, lembro-me da teimosia, do apego exagerado aos locais e às coisas, daqueles rituais quase obsessivos de usar sempre o mesmo prato e os mesmos talheres, mas custa-me recordar das coisas boas. Lembro-me de me levares à loja do Baptista e de me comprares invariavelmente um Sumol e um pacote de wafers, que trazia 5 bolachas. Lembro-me dos chocolates que desencantavas do bolso das calças. Lembro-me dos sabonetes e pastas de dentes que nos compravas como presente de aniversário - eras uma pessoa supostamente prática, as prendas têm de servir para alguma coisa. Lembro-me de nos levares às festas dali da zona, do S. João com os martelos, dos carrosséis da festa do Parque, de irmos a Espinho no comboio. Sei que deve ter havido muito mais coisas boas, mas custa-me lembrar-me delas. Talvez porque assim é mais fácil para mim, talvez assim não doa tanto, talvez assim o vazio não seja tão grande.
Parabéns, pai.
09/07/2009
A ouvir: November Rain, Guns'n'Roses
Mais vale tarde do que nunca...
Arranca hoje oficialmente a comissão de inquérito da ONU para determinar «as circunstâncias e os factos» do assassinato de Benazzhir Buttho, ocorrido em 2007. Não é que isso vá servir de muito, mas mais vale tarde do que nunca...
Há algum tempo que sabia que a ONU estava a tornar-se uma espécie de elefante branco, mas esperar dois anos para começar a investigar um assassinato é algo de que nem sequer a polícia portuguesa é capaz.
Bonito de ver
Há uns anos largos, ao vir da estação da CP da Cruz Quebrada a um domingo à tarde e a passar em cima da pontezinha sobre o Jamor para começar a subir a Estrada da Costa, reparei num casal de velhotes que estavam lá sentados num dos banquinhos que por lá havia, e recordo-me de por instantes ter ficado espantada com o cenário. Ambos de cabeças completamente brancas, ele nos sítios onde ainda tinha cabelo e ela com uma permanente irreprensível, ele de fato cor de café com leite, ela de vestido de malha clarinho e florido e sapatos de salto alto, ali os dois sentados, de mão dada, com os olhos mergulhados um no outro, como se não existisse mais ninguém no mundo, muito menos a rapariga que estava a olhar para eles fixamente do outro lado da estrada, e apesar de estar longe consegui ver a expressão de adoração nos olhos deles, aquela adoração de duas pessoas que viveram mais do que uma vida inteira juntos e que ainda assim cada dia sabe a pouco, querem mais, a cada dia que passa o amor aumenta, e a certa altura beijaram-se, como o casal apaixonado que efectivamente eram, e nunca me esqueci daquela cena, decerto já teriam netos, ou quem sabe bisnetos, e estavam ali aos beijos e arrulhar meiguices um ao outro como um casal de jovens com a vida inteira pela frente, e aquela imagem fez-me sonhar, ficou-me na cabeça como uma versão deturpada de O Beijo do Henri Cartier-Bresson, mas igualmente bela, um sinal de que o amor e a paixão não são coisas de velhos.
30/06/2009
A ouvir: Shine, Depeche Mode
Temor e tremor
Na quinta à noite, durante um dos ataques cada vez mais frequentes de insónias, pus-me a fazer zapping e parei no Hollywood, que estava a passar um filme francês chamado Temor e Tremor, e era sobre uma rapariga belga que ia trabalhar um ano para o Japão, a menina Amélie, que no fim do filme acabei por perceber que se tratava da Amélie Nothomb, a escritora, e que o filme era alegadamente autobiográfico, adiante, e as peripécias vividas pela moça na dita empresa, Yumimoto se não me falha a memória - ultimamente tem falhado mais do que a conta, daí não garantir se era mesmo Yumimoto ou Yamamono ou coisa parecida -, e a rapariga era de tal forma humilhada que quase parecia um filme de terror, foi brutalmente destratada por ter falado em japonês durante uma reunião onde entrara para servir cafés (sim, anda-se anos na faculdade, aprende-se a falar línguas dificílimas para tentar singrar no mercado de trabalho e depois vai-se servir café a um bando de idiotas malcriados e mal-encarados de fato e gravata), estava eu a dizer que a desgraçada perguntou aos mal-encarados se queriam café, em japonês, e por esse delito de lesa-majestade um dos superiores, o de terceiro grau se não estou em erro, arrastou-a por um braço e desancou-a, não tinha nada que ter falado em japonês, onde é que já se viu, uma estrangeira a falar japonês, que horror!, e a pobre contestou «mas vocês contrataram-me precisamente por eu falar japonês», o que desencadeou novo ataque de fúria, porque o chefe é que tem razão, e apesar de a submissão daquela gente, não só da menina Amélie como de muitos outros que lá trabalhavam, me ter provocado uma sensação de asco, continuei a ver aquilo, e surpreendeu-me que os japoneses não pudessem olhar para o rosto do chefe quando falavam com ele, tinham de estar de orelha murcha e olhos postos no chão, se o tipo dizia que era preto tinha de ser preto mesmo que fosse amarelo porque o chefe tem sempre razão, e a submissão e subserviência dos orientais sempre foi uma coisa que me complicou com os nervos e que nunca consegui entender, acho que por serem muitos têm de se tratar e ser tratados como autênticas formigas, há o líder, a formiga-rainha, e os outros são obreiros, ninguém conta, só a colónia, e se for preciso morrer pela colónia morre-se de bom grado, adiante, não quero estar a criticar culturas ancestrais mas enfim, e a tal Amélie, uma autêntica invertebrada, teve de ir trabalhar com uma fulana que ela achava linda de morrer mas que tinha tanto de bonita como de cabra sádica e perversa, a menina Mori, que lhe fez trinta por uma linha, mandou-a desempenhar tarefas cada vez mais degradantes ao ponto de a obrigar a ir fazer a manutenção das casas de banho, e eu a pensar «esta tipa deve ter-se esfalfado na universidade e agora está a substituir rolos de papel higiénico para os mal-encarados poderem limpar o cu», e a obstinação da menina Amélie em levar o contrato de trabalho até ao fim só era superada pela subserviência doentia que demonstrava, enfim, e não pude deixar de pensar que no mundo do trabalho já apanhei com alguns sacanas, e foi por uma unha negra que não levei com um cinzeiro na testa atirado por uma chefe tresloucada, mas não cheguei ao extermo da menina Amélie, e nem ao extremo daqueles japoneses da firma Yumimoto ou Yamamono ou lá o que seja, posso não ter cumprido os sonhos da infância, não ter escrito os livros que achava que iria escrever, ter o dinheiro que achava que iria ter, mas ainda conservo o meu cérebro, e isso ninguém poderá tirar-me, ninguém irá fazer de mim uma Amélie.
23/06/2009
A criar excêntricos
O novo anúncio televisivo do Euromilhões diz tudo: um pai compra um estádio de futebol ao filho a pensar que lhe está a dar o presente dos seus sonhos, e quando pergunta ao filho «que tal?», o rapaz responde com ar mortificado «ó pai, mas eu gosto é de carros...» ao que o pai responde com um optimista «não faz mal, manda-se alcatroar!». Será apenas um anúncio divertidíssimo, que ilustra bem o espírito da campanha, ou pode significar ao mesmo tempo uma sátira feroz à paternidade dos dias de hoje? Até que ponto estaremos a criar excêntricos?
29/05/2009
Jesus está em todo o lado
Para os fervorosos religiosos, o JC anda em todo o lado, e nos Estados Unidos - where else? - até nos pacotes de Doritos, pelo menos é o que alega um casal americano sedento de fama, «ok, não temos dinheiro por causa do subprime, do Greenspan e dos outros aldrabões todos, mas já me lembrei de uma boa, vamos dizer que vimos Jesus num sítio qualquer e depois ganhar pipas de massa em entrevistas, se calhar atá vamos à Oprah e tudo, já viste, mulher?, vamos ser mais conhecidos do que aqueles 3 putos de Espanha que dizem que viram a Virgem em cima de uma árvore qualquer, ou seriam antes de Marrocos?, já não me lembro, mulher, e depois até o Papa, aquele tipo que anda vestido de branco e que agora meteu um chapéu esquisito na cabeça, depois até esse gajo nos vai tratar como merecemos, não é, môr, bora lá divulgar a nossa história, môr, estamos na América, aqui tudo é possível, até mesmo encontrar Jesus Cristo dentro de um pacote de Doritos», e enquanto Coelho admito que o desespero possa levar as pessoas a situações extremas, quanto maior a miséria maior a fé, as pessoas precisam de ter algo a que se agarrar, senão what's the point, de que vale andar aqui, já a Carmen Martin Gaite dizia que o estranho é viver, morrer é natural, enfim, se calhar até haverá algo de bom a sair desta história, se calhar o dito casal até vai aparecer na Oprah e ganhar rios de dinheiro, mas cheira-me é que os executivos da Matutano estão a esfregar as mãos de contentes, «fixe, bora meter efígies de Jesus Cristo como brindes nos pacotes para aumentar as vendas!».
21/05/2009
A ouvir: Personal Jesus, Depeche Mode
Já chega!
Já chega de gripe dos porcos, então não vêem que estão a deixar o Lobo Mau completamente aterrado, e depois quem paga as favas é a Capuchinho, pois o bicho tem de comer à mesma, ou porcos ou criancinhas tanto lhe faz, e o Porky Pig já nem sai de casa, coitadinho, não lhe basta ser gago como agora ainda tem de gramar com a quarentena, e os leitõezinhos da Bairrada é que devem estar todos contentes, do estilo «deixa-me cá forçar um espirro para ver se me livro de ir parar ao forno com uma laranjinha enfiada na boca», e será que a Câmara da Mealhada vai mandar retirar aquela estátua ao leitão que há naquela rotunda que há no meio do IC2, não vá o porquinho de mármore infectar os pobres cidadãos incautos, afinal a dita gripe ainda é mais mortífera do que a famigerada gripe das galinhas, que horror, onde é que já se viu, é uma praga de proporções bíblicas, quantos é que já morreram, vinte e sete mil pessoas?, ah, não, foram só vinte e sete, esqueçam os mil, vinte e sete pessoas nos seis mil milhões que há aqui neste calhauzito a seguir ao Sol, e ainda por cima a maioria delas no México, um país subdesenvolvido com tanta população carenciada em que os cuidados de higiene e de saúde não são propriamente os melhores, enfim, e agora vem Taiwan a condicionar os voos para Portugal (!!!!!) só porque houve alguém que foi passar férias ao México e voltou doente, que drama, fechem já as fronteiras, tragam as brigadas de controlo de doenças, façam ao país o que se fazia no Monsters Inc de cada vez que uma criancinha tocava num monstro, queimem os porcos, fuzilem sem apelo nem agravo todos aqueles que derem um espirro ou tossirem para depois os incinerarem, mas façam isso já, para aumentar o drama, porque depois começa a campanha para as Europeias e a Comunicação Social já vai ter outras coisas de que falar...
05/05/2009
A ouvir: Viva la Vida, Coldplay
Encontros Fictícios - Annie Wilkes, Misery
Ao ouvir o meu nome no intercomunicador, fechei o livro e levantei-me. Uma das canadianas caiu-me ao chão e um homem que estava sentado numa das cadeiras e que tinha um braço engessado baixou-se para apanhá-la.
Sorri-lhe envergonhada e agradeci-lhe. Céus, como é horrível depender dos outros para coisas tão simples como apanhar um objecto caído do chão.
Dirigi-me ao gabinete nº 5, com o joelho imobilizado e a perna pendurada, encavalitada aos saltinhos nas canadianas.
A sala estava vazia e fiquei ali sem saber o que fazer. Decidi não estar com cerimónias: afinal, tinha feito uma cirurgia ao joelho há menos de uma semana e não ia ficar ali de pé apoiada nas canadianas. Sentei-me numa das cadeiras que lá havia, e de repente ela entrou.Uma mulher obesa, que aparentava ter cinquenta e poucos anos, ou talvez fosse o excesso de peso a fazê-la parecer mais velha. Tinha um ar apagado, com o cabelo oleoso e escorrido, de um castanho anódino e baço, e olhinhos pequeninos e porcinos, muito vivos e brilhantes. No bolso da farda branca de enfermeira estava o nome dela bordado com letras azuis: Annie Wilkes.
Olhou rapida e maquinalmente para mim, e depois para a ficha que trazia presa a uma pasta de plástico rígido.
- Branca Coelho, certo? - Sem esperar que lhe respondesse indicou-me a marquesa com um gesto da cabeça. - Pode deitar-se ali na marquesa e despir as calças. O doutor Grenate já vem.
Sem uma palavra, fiz o que ela me disse, e daí a pouco apareceu o médico. Annie aproximou-se de mim com uma tesoura na mão e começou a cortar os adesivos e as ligaduras que me envolviam o joelho, até as cicatrizes da operação ficarem a descoberto.
O médico observou, pegou-me na perna e fez-me dobrá-la tanto quanto possível, e depois assentiu com a cabeça.
- Enfermeira Wilkes, pode tirar os pontos à menina Coelho – disse-lhe, sem sequer olhar para ela. Virando-se para mim, sorriu e disse-me: - Quero vê-la daqui a duas semanas, Branca. Até lá vai usar só uma das canadianas, e fazer os exercícios de que falámos antes.
Apertou-me a mão, girou nos calcanhares e abandonou o gabinete, deixando-me ali com a enfermeira obesa de olhinhos de porca. Havia algo nela que não batia certo, que me fazia antipatizar com a criatura.
Ela pegou numas pinças esterilizadas e preparou-se para o curativo. A expressão dela permanecia apática, mas de súbito a mulher pareceu transfigurar-se. Foi então que percebi que ela tinha os olhos fixos num dos livros que estava a espreitar do meu saco.
- Oh! – exclamou. – A senhora gosta dos livros da Misery?
Era isso. O livro.
- Na verdade, é para oferecer. – Enquanto ela trabalhava no meu joelho, pesquei-o e olhei melhor para ele. Misery e o Visconde. – Comprei-o para a minha irmã, ela gosta deste tipo de livros.
Ela olhou-me surpreendida.
- E você não gosta? – perguntou-me, algo escandalizada, e senti-lhe na voz um tom de censura. - Da Misery, quero dizer. Eu adoro os livros dela, tenho-os todos!
Sorri educadamente.
- Acredito que sim – disse. – Mas não é bem o género de livros que aprecio…
Ela pareceu ignorar-me, mas não sei se de propósito ou por descuido, puxou a linha com mais força do que devia. Guinchei de dor e encolhi a perna num acto reflexo.
- Desculpe.
Olhei para os olhos dela. Fora de propósito, já que não havia ali nenhum arrependimento.
- O Paul Sheldon é sem dúvida o melhor escritor do mundo – dizia ela com ar sonhador. – Daria a minha vida para conhecê-lo.
Decididamente a mulher não tinha os parafusos todos. Annie continuou:
- Há coisa de um ano, estive seis horas à porta de uma livraria à espera para ele me autografar os livros. – A boca dela contraiu-se então num esgar de raiva. – Mas ele não apareceu! E eu ali, à chuva e tudo, a passar frio! Já viu? – A sombra que lhe atravessara o olhar desapareceu de imediato. – Mais tarde soube que foi porque ele estava a trabalhar noutro livro, esse que a senhora aí tem, e depois perdoei-lhe.
Autógrafos? É algo que nunca consegui compreender. Qual o interesse em ter uma assinatura de alguém só porque esse alguém é famoso? Creio que só pediria um autógrafo se fosse a Deus, e unicamente para ter uma prova física da sua existência. A obsessão das pessoas por ídolos é algo que sempre me ultrapassou. Por mais brilhante que possam parecer, são independentes da obra que criam, tal como uma mãe é um ser independente do filho que gera dentro de si. No momento em que a obra é produzida, separa-se do seu criador, e a obra passa a valer por si, e quem a criou torna-se o casulo inútil de onde a borboleta saiu. Ela continuava a falar.
- A senhora gosta de ler, não gosta? Vejo que tem aí mais livros. Quem é o seu escritor preferido?
O Paul Sheldon é que não é, de certeza!
- Não tenho escritores preferidos. Tenho livros preferidos. – A minha resposta parece confundi-la. – Por exemplo, gostei muito de ler o American Psycho, mas o autor não me diz nada. Aliás, nem sei sequer se é alto ou baixo, nunca me dei ao trabalho de ver sequer uma foto dele.
- Mas… Não fica empolgada quando vê um livro novo dele? E as personagens? Não acha que retratam a sua vida?-
Para dizer a verdade, não. Quando estou a ler um livro, leio a história que lá está. O autor pode escrever bem ou mal, é só isso. O que é digno de admiração são as obras, não as pessoas.
Ela ficou calada, a pensar no que acabara de lhe dizer, e depois contrapôs:
- Mas se uma obra é genial, isso não significa que o seu criador é um génio?
- A genialidade está na cabeça das pessoas. A arte, seja ela qual for, é subjectiva, e isto inclui a literatura.
Annie não pareceu ficar satisfeita com a resposta. Calou-se, colocou-me um penso por cima das cicatrizes e disse-me:
- Já está, pode vestir-se.
Girou nos calcanhares e foi-se embora, não sem antes dar uma última olhadela ao livro, um olhar embevecido e apaixonado.
28/04/2009
A ouvir: Wrong, Depeche Mode
Encontros Fictícios - Alex, A Clockwork Orange
Confesso que quando o vi no átrio do hotel, Alex não era nada como eu o tinha imaginado. A imagem que tinha dele era a das fotografias dos jornais da época, um adolescente esquálido, magricela e de olhos castanhos muito grandes e profundos, mas quem estava à minha frente era um homem de meia-idade, já meio careca, algo barrigudo e com o rosto vincado por algumas rugas. Somente o chapéu de coco que segurava nas mãos trémulas correspondia à minha imagem mental dele.
- Senhora Coelho - cumprimentou-me estendendo-me uma das mãos, que apertei. - Disseram-me que pretendia govoritar comigo.
Sorri. A linguagem nadescente já se encontrava em desuso, mas ainda assim conseguira encontrar um dicionário da altura e sabia que «govoritar» queria dizer falar.
Anuiu com a cabeça.
- Não sei se lhe explicaram o porquê do meu pedido.
- Sim, o meu cheloveco contou-me que você rabita numa gazeta e que quer escrever sobre a minha rascás.
Tive de pensar algum tempo até compreender o que ele dissera. Quem me dera que houvesse aqui um serviço de tradução simultânea...
- Gostaria de saber como tem sido a sua vida nos últimos anos, depois de ter sido submetido ao tratamento.
Ele endireitou-se na cadeira, preparando-se para falar.
- Importa-se que fume um cancerilho? - perguntou-me tirando um maço de Marlboro do bolso.
Recordei-lhe delicadamente que não era permitido fumar naquele local e ele voltou a metê-lo no bolso.
- Sabe, desde que aquele médico me varitou, nunca mais consegui videar as coisas da mesma maneira. - Calou-se e fez sinal ao empregado. - Quer um sumodouro?
- Só se for um café.
Ele vira-se para o empregado.
- A chena quer uma tassa de café, e para mim pode ser molco. Sem sácar.
O homem olhou-o surpreendido e eu traduzi: um café e um copo de leite, sem açúcar.
- Não devia beber café - diz-me Alex. - Faz-lhe mal à galiva...
- Obrigada pela preocupação. Mas estava a dizer...
- Quando eu era máchico e a milicem me luvetou e levou para a penies, tive muita raza para pensar. Poniei que quando itasse de lá, ia ter de rabitar e prodar qualquer coisa. Entretanto, uma shaica ubivatou os meus progenetas, e depois, como não tinha denque, arranjei um rabito num cantór.
- E quando é que teve a ideia de se dedicar ao estudo da língua nadescente?Alex empertigou-se todo.
- Para nascinar, não se trata de uma linguagem. Trata-se de um conjunto de eslovos usados pelos nadescentes quando govoritam entre si.
- Certo - disse-lhe -, mas com o tempo foi adquirindo um estatuto de língua, um pouco à semelhança da linguagem sms dos jovens da actualidade.
- Isso é uma chapouca - respondeu-lhe Alex. - Os bezúminos que dizem isso não passam de bratachenos nademénios. Os debóchecos e debóchecas de hoje usam uma protolinguagem sem qualquer significado. Não têm um pingo de méssel; usam esses eslovos até na escoliosa, só que é unicamente para poupar raza.
- Portanto, está a querer dizer que a linguagem sms é usada pelos jovens para poupar tempo para o que lhes interessa, por causa do ritmo de vida acelerado de hoje, e também porque simplesmente dá trabalho escrever as palavras correctamente... - conclui.
Ele dá uma gargalhada.
- Não me faça desmecar! E agora ainda vêm aqueles bratachenos da política com a rascás do acordo ortográfico. Para quê? Acham que os debóchecos e debóchecas vão esluchir o que eles govoritam? Se querem mudar os eslovos tem de ser com raza, aos poucos. A língua não se pode mudar por sovietos.
Tive de concordar com ele: a língua tem de evoluir, isso é certo, mas aos poucos; não se pode mudar por decreto, hoje é assim mas amanhã por causa da lei x/999/yht é assado... Voltei a insistir:
- Mas diga-me uma coisa, Alex. Como irá escrever depois da entrada em vigor do acordo?
Durante algum tempo ele fica pensativo, e depois responde:
- As luídes podem grichar, mas no fim vão poniar que não serve de nada e o que vai esluchatar é que vão todos fazer o que lhes mandam como uma grupa de carneiros. Grichar não vai provideitar a nada...
22/04/2009
A ouvir: Savior, 30 Seconds to Mars
Encontros Fictícios - Valmont, Les Liaisons Dangereuses
O baile de máscaras estava já animado quando cheguei. Fui conduzida ao salão, com o roçagar do meu vestido a ser abafado pela música e pelos risinhos de um grupo de donzelas que conversavam aos sussurros sentadas numa otomana.Seguravam as máscaras por forma a taparem os rostos, mas ainda assim reconheci uma delas pela voz: Cecile de Volanges, quase uma criança, que saiu há pouco do convento. Saudei-as com uma inclinação de cabeça e elas retribuíram. Continuei pelo corredor adiante em direcção ao salão de baile, a segurar a minha máscara branca em forma de focinho de coelho, com orelhas felpudas e tudo, que a minha aia me confeccionara com lã de Caxemira e algodão das Índias.No salão de baile, cheio de gente, as damas arrastavam os vestidos atrás de si e tentavam equilibrar as perucas empoadas em cima das cabeças, que só muito a custo conseguiam manter direitas, mercê do elevado peso das perucas e dos penteados elaborados.
Foi então que o vi. Valmont.
Era o único homem com o rosto a descoberto, facto que só por si lhe conferia uma aura de sedutora ousadia. Orgulhosamente direito, com uma casaca de veludo castanho-escuro bordada a fio de ouro e com botões de topázio, os olhos brilhantes como os de um bufo à procura de uma presa, o visconde intimidava qualquer pessoa que olhasse para ele.Ao ver os olhos dele encontrarem os meus, senti subitamente o meu espartilho a ficar mais apertado, e um fogo percorreu-me as faces ao vê-lo encaminhar-se para mim.
— Boas noites, madame Lapin Blanc — cumprimentou-me inclinando a cabeça e pegando delicadamente na minha mão, onde depositou um beijo cortês.
— Senhor Visconde — retribuí, baixando recatadamente os olhos. — Como me reconhecestes?Os lábios dele abriram-se num sorriso enigmático e ao mesmo tempo revelador.
— Só vós teríeis a ousadia de exibir uma máscara como a que trazeis, em vez da comum mascarilha escolhida pelas mulheres desta sala.
Não pude evitar sorrir também, ao recordar a expressão de horror e assombro de Sylvie, a minha aia, quando lhe encomendei o serviço.
— E vós? — perguntei-lhe. — Porque não estais mascarado?
Valmont hesitou um pouco antes de me responder, como se medisse as palavras.
— Não me agradam as máscaras — disse por fim. — O verdadeiro cavalheiro nunca oculta o rosto, para que possa olhar sempre de frente para os seus inimigos. E muito menos recorre a engodos e disfarces para fazer-se passar por aquilo que não é.
Anuí, e contrapus:
— Muita gente não pensa assim a respeito de vós.
Ele arqueou uma sobrancelha, divertido.
— Ai sim? E o que pensam então a respeito de mim?
Escolhi cuidadosamente o que dizer antes de abrir a boca.
— Dizem que sois falso, manipulador e perverso, e que apenas pensais em satisfazer a vossa luxúria sem vos importardes com os sentimentos ou a honra das mulheres que seduzis.
Valmont deu uma gargalhada, mas logo de seguida ficou muito sério.
— Pois então mentem!
Assustada, apressei-me a desculpar-me pela minha ousadia:
— Peço-vos perdão, senhor Visconde, mas limitei-me a responder à vossa pergunta, e lamento que o resultado vos tenha ofendido.
— Não, não me ofendestes, madame Lapin Blanc, de todo. Eu importo-me com os sentimentos das mulheres, e a palavra-chave aqui é «mulheres», plural. Muitas das observações negativas a meu respeito devem-se unicamente ao ciúme e orgulho ferido de mulheres que pretendiam caçar e acabaram caçadas.
— Em certa medida concordo convosco — disse-lhe —, mas o facto de serdes visto na companhia de cortesãs como a marquesa de Merteiul, por exemplo, não abona nada a vosso favor. Nunca pensastes em dedicar-vos unicamente a uma só mulher?
Valmont voltou a sorrir.
— Madame — sussurrou —, falais de alguém em concreto? Talvez… de vós?
Estremeci com a ideia. Tive vontade de girar nos calcanhares e desatar a correr, mas como o fazer sem me comprometer? Em vez disso, retorqui:
— Não, senhor Visconde. Não me agradaria ficar com o que já passou pelas mãos de tanta gente. — O rosto dele contraiu-se num esgar de raiva e, encorajada pela expressão dele, continuei: — Além disso, sou mulher de um homem só. Nada se compara à felicidade de ver o nosso rosto reflectido nos olhos de quem amamos, e tenho pena de vós, pois sei que nunca ireis experimentar tamanha alegria. Muito boa noite, senhor Visconde. — Inclinei novamente a cabeça num gesto de despedida e retirei-me.
12/04/2009
A ouvir: Love Etc., Pet Shop Boys
A sério?
Ontem uma notícia dizia que o número de acidentes laborais mortais em Portugal diminuiu face ao ano passado. Tendo em conta o aumento do número de desempregados, não me surpreende.
Botas verde-alface
Este fim de semana comprei uma coisa que nunca pensei em comprar: um par de botas verde-alface. Encontrei-as numa loja de chineses mesmo no centro de Portalegre, e confesso que não me passaria pela cabeça comprar calçado dessa cor, o que raio usaria para combinar com umas botas verde-alface, bicudas e de salto alto, mas o preço fez-me decidir comprá-las, uns meros cinco euros, e é claro que sei que não irão durar muito, e que daqui a uns tempos hão-de estar completamente desfeitas, só que ainda assim trouxe-as para casa, e de cada vez que olho para elas ponho-me a pensar em como é possível uma coisa destas, quanto é que pagarão à mão-de-obra que fez aquele par de botas, cortar as peças, cosê-las, meter as gáspeas nas formas, colar as solas e os saltos e depois embalá-las, se os salários já são tão baixos, e recordo-me de em tempos ter trabalhado durante dois meses no Verão para poder comprar os livros da escola porque as coisas estavam más, e lembro-me do que passei na altura, com um fulano mal encarado a cortar as peças com os moldes e o balancé, outro a fresear as bordas, e eu a passar cola de sapateiro nos bocadinhos todos para depois as gaspeadeiras juntarem as peças e cosê-las na máquina de gaspear, e depois de cosidas, queimar as pontas das linhas com uma vela, para depois passar as gáspeas para os sapateiros enfiarem nas formas e meterem os contrafortes para dar corpo ao sapato, e a seguir prendê-los às formas, pregados com preguinhos minúsculos, que eram retirados depois de os sapatos ou botas ou o que fosse ficarem a moldar-se dentro das formas durante vários dias, e a seguir meter os saltos, as viras, as palmilhas, as solas e afins, para a seguir lhes retirarem as formas e passá-los ao acabamento, para tirar os restos de cola, apertar fivelas, fechar fechos, enfiar e apertar os atacadores, e depois enfiar-lhes montinhos de papel para não amassarem e embrulhá-los em papel de seda para por fim serem enfiados nas caixas, e volto a perguntar-me quanto é que pagarão à mão-de-obra que fez aquelas botas verde-alface que custaram cinco euros...
31/03/2009
A ouvir: Human, The Killers
A Dora cresceu

23/03/2009
A ouvir: Maria, Blondie
Morangos de Inverno
Ao escrever um pequeno texto sobre agricultura biológica, lembrei-me dos morangos que costumava comer em miúda e que eram cultivados nuns vasos improvisados em latas de cola velha cortadas ao meio e que eram enchidas com terra, e esses morangos eram bem mais pequenos do que aqueles que vemos hoje à venda, que são enormes mas sabem a água, os morangos de inverno que eu comia e que eram plantados nas latas de cola eram doces e pequeninos, e lembro-me de andar todos os dias a procurar entre as folhas das morangueiras a ver quando é que encontrava algum vermelho e maduro que pudesse comer, os morangos não eram tão vulgares e banais como hoje e na altura encontrar um maduro era quase como encontrar um rubi, eram absolutamente preciosos, mas hoje já perderam o valor, tornaram-se uma coisa como tantas outras, já não existem apenas em determinada altura, estão à venda todo o ano, e parece que além de terem perdido o sabor perderam o encanto, deixaram de ser preciosos e são agora umas coisas vermelhas a saberem a água, talvez porque agora não os vou buscar às latas da cola cheias de terra, onde por vezes deparava com um ou outro caracol a deambular pelas folhas das morangueiras, enfim, os morangos, tal como muitas outras coisas, perderam o seu encanto, porque já não é preciso procurar pelos rubis vegetais pequeninos e doces...
07/03/2009
A ouvir: The 80's, David Fonseca
Under pressure
Ao fazer aquela conversa de elevador com uma vizinha, do tipo «ai-estou-tão-cansada-o-dia-hoje-parecia-que-não-acabava-estou-cheia-de-sono», comentei que não tinha dormido bem nessa noite, ao que ela responde que não tem desses problemas, porque quando tem insónias toma um comprimido e pronto, soninho descansado, «ainda ontem tive de tomar um porque a minha filha ia hoje ter um teste de ciências e fiquei tão nervosa que não conseguia dormir e por isso tomei o comprimidito e pronto», deixando-me horrorizada, se uma mãe chega ao ponto de tomar calmantes porque a filha de dez anos tem um teste de ciências na escola como não será para a pobre criança, e lembrei-me de uma outra situação em que a mesma mãe pedia a Deus nosso senhor que protegesse a menina que ia ter um teste com o mesmo fervor de uma mãe que vê o filho partir para a guerra, e na altura, para além de ter ficado a pensar que a mulher era louca, pensei no martírio que a filha dela e milhões de outras crianças dos dias de hoje passarão com pais assim, crianças que quase têm de marcar os compromissos num blackberry com dois meses de antecedência, do tipo às cinco e meia aula de piano, às seis e meia de inglês, às oito natação, pausa para jantar, dez minutos para brincar e depois às dez e meia da noite aula de cálculo avançado ou de mandarim ou de ioga ou de técnicas de pintura surrealista ou uma coisa assim esquisita (para uma criança, subentenda-se), e como é que os miúdos de hoje aguentam isso, é certo que as crianças são mais fortes do que pensamos mas é um tal mandar criancinhas para os psiquiatras e metê-las a medicamentos, lembro-me que em miúda não havia nada destas coisas, em casa nem sequer sabiam quando eu tinha testes ou deixava de ter, nunca foi preciso mandar-me fazer o que quer que seja porque já tinha em cima de mim a pressão de ter de ir trabalhar para uma fábrica de sapatos se falhasse, isso sim, já disse e escrevi muitas vezes que o mundo está em versão fastforward e tudo acontece cada vez mais depressa e há cada vez mais pressão para fazer mais, mais rápido, melhor, mais barato, e sempre mais mais mais mais mais, as crianças têm de aprender tudo para depois não saberem nada, metem-nas em aulas disto e daquilo e de mais alguma coisa, mas na realidade se formos a ver não as ensinam a viver, porque estão de tal maneira pressionadas pelo mais e mais que se esquecem do que verdadeiramente importa, e não quero saber se daqui a uns anos o meu monstrinho das bolachas vai ser o próximo Nadal ou o próximo Eric Owen Moss ou o próximo Nobel da Literatura ou o novo Mozart, a coisa mais importante que lhe posso dar é o bem mais escasso que existe, que é o tempo para viver e ser feliz, sem pressas e sem pressões, e sem ter de aturar uma mãe a tomar calmantes de cada vez que ele faz um teste na escola ou a prometer ir a Fátima a pé se a menina tiver um bom no teste de educação física...
19-02-2009
A ouvir: I Grieve, Peter Gabriel
A idade da inocência
Quando tinha aí uns catorze anos e ainda estava naquele limbo entre a infância e a idade adulta chamado adolescência, eu e a minha mãe regressávamos de casa da minha tia, e ao passar em frente ao hospital que ficava em caminho, fomos abordada por uma miudinha que não deveria ter mais do que sete a oito anos, e a pequena veio ter connosco muito aflita a perguntar-nos onde era a entrada para as urgências, e quando lhe perguntei se ela estava bem, ela olhou para mim com os olhos rasos de água, e mostrou-me um passarinho que tinha entre as mãos e disse-me «ele está a morrer e quero salvá-lo», e confesso que fiquei sem palavras, mas a minha mãe lá lhe explicou que os hospitais não servem para tratar pardais que caem do ninho, servem para tratar pessoas, ou pelo menos deveriam servir, já que há alguns que nem isso, mas adiante, não vou bater mais no ceguinho, voltando à menina e ao pássaro, desconheço o que foi feito deles, provavelmente o bicho morreu e a miúda ficou triste e já nem se lembra que um dia abordou duas desconhecidas porque queria levar um pardalinho ao hospital, mas eu como tenho memória de elefante lembro-me, e agora ao ver os miúdos a brincarem com os tamagoshis e com as pixel chicks e com todas essas bonecadas virtuais pergunto-me como seria se esses miúdos se deparassem com um pardalinho que caiu do ninho, será que iriam tentar levá-lo ao hospital, e acho que talvez não, essa idade já se perdeu, a idade em que acreditamos que se levarmos um pássaro moribundo ao hospital poderemos salvar-lhe a vida, e é certo que essa idade da inocência é um pau de dois bicos, quando se é inocente acredita-se em tudo, que se engolirmos uma pastilha elástica ela nos vai colar as tripas, ou se formos a Guimarães as nossas pernas ficam lá para fazer cabos de facas, ou outro daqueles mitos estapafúrdios mas que tornavam a vida mais misteriosa e uma descoberta constante, e hoje fico um pouco triste por ver que já não há nada a descobrir e que até o meu monstrinho das bolachas de dois anos já sabe coisas como «se carregar no botão vermelho do comando a televisão liga-se ou desliga-se», enfim, com a perda da idade da inocência é um pouco como se a própria vida perdesse um pouco da sua magia.
12/02/2009
A ouvir: Leave out all the rest, Linkin Park
Happy Birthday to me
Subitamente dei-me conta de que faz hoje um ano que o Coelho Branco nasceu e escreveu o primeiro post, e portanto...
Happy Birthday to me
Happy Birthday to me
Happy Birthday Coelhinho
Happy Birthday to meeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
Happy Birthday to me
Happy Birthday to me
Happy Birthday Coelhinho
Happy Birthday to meeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
22/01/2009
Acerca dos rissóis
Quando era miúda e andava aí na terceira classe, inventei que precisava de um caderno para a escola - na altura o que eu contava eram os tostões, não os minutos, e daí ter recorrido a uma mentirinha para levar a minha avante - e lá consegui que me dessem autorização para ir à loja do Meco moleiro comprar um caderno A5 pautado, que tinha uma capa com um casal de ratinhos da Disney, o Bernardo e a Bianca, e lá voltei toda contente e saltitante para casa com o meu tesouro, e de seguida enfiei-me no quarto a escrever com a minha caligrafia hesitante de quem só tem oito anos, quis escrever um livro de contos (já nessa altura tinha a mania que sabia escrever e mesmo sem saber o que era o prémio Nobel ambicionava ganhar um) e o primeiro conto era sobre uma andorinha que se apaixonava por um pardal e a maior parte da história era a descrever o banquete do casamento, na minha cabeça se uma carocha podia casar com um rato e os porcos construir casas, porque não uma andorinha andar embrulhada com um pardal, se eram ambos pássaros e eu sabia que os burros volta e meia metiam-se com as éguas e daí a origem das mulas, e o que dizer dos ligres, resultado do cruzamento de leões com tigres, enfim, naquela idade tudo me parecia possível, bom, de volta ao banquete de casamento os pardais e as andorinhas tinham ao seu dispor uma série de iguarias, e entre elas estavam os rissóis de minhoca, e a certa altura, não sei como, esse caderno acabou por ir parar às mãos da minha professora, que ficou surpreendidíssima com o facto de eu ter inventado algo tão imaginativo como aves a comerem rissóis de minhoca, mas nunca tive coragem de dizer que tinha tirado essa ideia de um episódio do Sítio do Picapau Amarelo, de uma conversa entre a Emilinha e a Narizinho acerca de uma colónia qualquer de formigas, e isso sempre me pesou um bocado na minha consciência, particularmente de cada vez que olhava para a boneca Emilinha que a senhora Carolina me tinha oferecido no Natal e que estava sentada em cima da minha cama a fitar-me com ar acusador, «plagiadora, a ideia dos rissóis foi minha», não sei porque diabos me fui lembrar agora dessa história dos rissóis, deve ser por causa de nos dias de hoje já não haver nada de novo e de tudo ser um aproveitamento de coisas do passado, é como se de um momento para o outro todos nos tivéssemos apercebido de que os recursos ao nosso dispor são limitados e que temos de reutilizar os que há, sejam eles materiais ou ideias, já não sei o que foi feito desse caderno com o Bernardo e a Bianca na capa, mas a boneca ainda continua algures na arrecadação no sótão pronta para a qualquer instante me lembrar que não fui eu quem inventou os rissóis de minhoca.
22/01/2009
A ouvir: Everyday is exactly the same, Nine Inch Nails
44
Há quem diga que chegámos ao fim do mundo, hoje é o primeiro dia da contagem para o Armagedão, segundo alguns, pois é o dia da tomada de posse do Obama, um negro (perdão, afro-americano, que nestas coisas há que ser politicamente correcto mesmo que se ache que os políticos são apenas um mal necessário, é um bocado como as administrações dos condomínios, toda a gente fala mal mas ninguém quer ficar com essa pastilha, só que é preciso que alguém tome conta da coisa e lá se tem de arranjar quem esteja disposto a arcar com isso), enfim, ainda agora comecei e já me estou a perder, estava a tentar falar do Obama, o 44º gajo a ocupar aquela casa branca com forma de bolo de noiva, e o mundo inteiro rejubila porque finalmente o 43 vai embora, já foi suficiente mau ter que levar com o pai para ainda por cima ter de levar com o idiota do filho, um menino mimado alcoólico, megalómano e maníaco que quis dar uma de Obi-Wan Kenobi na sua cruzada contra o Eixo do Mal, sendo suportado por outros malucos como ele, deve ter ficado obcecado com isso quando viu a saga Star Wars por entre bebedeiras e ganzas, e a partir de agora já não vai dar para ligar para o paizinho a perguntar «então, 41, como é que estás? Daqui fala o 43 hehehehe», depois de ter deixado o mundo virado ao contrário e de ter sido o responsável directo por tantos milhares de mortos vai retirar-se tranquilamente para o seu rancho no Texas onde vai continuar a jogar golfe e a emborcar bourbon, enquanto que o desgraçado do Obama vai ter de trabalhar literalmente como um preto para voltar a endireitar aquela nação desgovernada, ou seja, o bebedolas do 43 deixou tudo de pantanas tal como o Katrina destruiu Nova Orleães e agora o 44 vai ter de apanhar os cacos e arrumar a casa, em Portugal continuamos a ansiar pelo D. Sebastião que há-de chegar numa manhã de nevoeiro para endireitar isto mas as expectativas dos americanos são mais elevadas, melhor dizendo, são à escala da dimensão do seu país, e como tal esperam por um Messias salvador, o desespero é tanto que nem sequer se importam de ele ser preto, e realmente no estado em que o 43 deixou aquilo, é bom que seja mesmo um Messias, porque nesta altura do campeonato o que o mundo precisa mesmo é de um milagre...
20-01-2009
A ouvir: End of the World, REM
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