Encontros Fictícios - Annie Wilkes, Misery

Ao ouvir o meu nome no intercomunicador, fechei o livro e levantei-me. Uma das canadianas caiu-me ao chão e um homem que estava sentado numa das cadeiras e que tinha um braço engessado baixou-se para apanhá-la.
Sorri-lhe envergonhada e agradeci-lhe. Céus, como é horrível depender dos outros para coisas tão simples como apanhar um objecto caído do chão.
Dirigi-me ao gabinete nº 5, com o joelho imobilizado e a perna pendurada, encavalitada aos saltinhos nas canadianas.
A sala estava vazia e fiquei ali sem saber o que fazer. Decidi não estar com cerimónias: afinal, tinha feito uma cirurgia ao joelho há menos de uma semana e não ia ficar ali de pé apoiada nas canadianas. Sentei-me numa das cadeiras que lá havia, e de repente ela entrou.Uma mulher obesa, que aparentava ter cinquenta e poucos anos, ou talvez fosse o excesso de peso a fazê-la parecer mais velha. Tinha um ar apagado, com o cabelo oleoso e escorrido, de um castanho anódino e baço, e olhinhos pequeninos e porcinos, muito vivos e brilhantes. No bolso da farda branca de enfermeira estava o nome dela bordado com letras azuis: Annie Wilkes.
Olhou rapida e maquinalmente para mim, e depois para a ficha que trazia presa a uma pasta de plástico rígido.
- Branca Coelho, certo? - Sem esperar que lhe respondesse indicou-me a marquesa com um gesto da cabeça. - Pode deitar-se ali na marquesa e despir as calças. O doutor Grenate já vem.
Sem uma palavra, fiz o que ela me disse, e daí a pouco apareceu o médico. Annie aproximou-se de mim com uma tesoura na mão e começou a cortar os adesivos e as ligaduras que me envolviam o joelho, até as cicatrizes da operação ficarem a descoberto.
O médico observou, pegou-me na perna e fez-me dobrá-la tanto quanto possível, e depois assentiu com a cabeça.
- Enfermeira Wilkes, pode tirar os pontos à menina Coelho – disse-lhe, sem sequer olhar para ela. Virando-se para mim, sorriu e disse-me: - Quero vê-la daqui a duas semanas, Branca. Até lá vai usar só uma das canadianas, e fazer os exercícios de que falámos antes.
Apertou-me a mão, girou nos calcanhares e abandonou o gabinete, deixando-me ali com a enfermeira obesa de olhinhos de porca. Havia algo nela que não batia certo, que me fazia antipatizar com a criatura.
Ela pegou numas pinças esterilizadas e preparou-se para o curativo. A expressão dela permanecia apática, mas de súbito a mulher pareceu transfigurar-se. Foi então que percebi que ela tinha os olhos fixos num dos livros que estava a espreitar do meu saco.
- Oh! – exclamou. – A senhora gosta dos livros da Misery?
Era isso. O livro.
- Na verdade, é para oferecer. – Enquanto ela trabalhava no meu joelho, pesquei-o e olhei melhor para ele. Misery e o Visconde. – Comprei-o para a minha irmã, ela gosta deste tipo de livros.
Ela olhou-me surpreendida.
- E você não gosta? – perguntou-me, algo escandalizada, e senti-lhe na voz um tom de censura. - Da Misery, quero dizer. Eu adoro os livros dela, tenho-os todos!
Sorri educadamente.
- Acredito que sim – disse. – Mas não é bem o género de livros que aprecio…
Ela pareceu ignorar-me, mas não sei se de propósito ou por descuido, puxou a linha com mais força do que devia. Guinchei de dor e encolhi a perna num acto reflexo.
- Desculpe.
Olhei para os olhos dela. Fora de propósito, já que não havia ali nenhum arrependimento.
- O Paul Sheldon é sem dúvida o melhor escritor do mundo – dizia ela com ar sonhador. – Daria a minha vida para conhecê-lo.
Decididamente a mulher não tinha os parafusos todos. Annie continuou:
- Há coisa de um ano, estive seis horas à porta de uma livraria à espera para ele me autografar os livros. – A boca dela contraiu-se então num esgar de raiva. – Mas ele não apareceu! E eu ali, à chuva e tudo, a passar frio! Já viu? – A sombra que lhe atravessara o olhar desapareceu de imediato. – Mais tarde soube que foi porque ele estava a trabalhar noutro livro, esse que a senhora aí tem, e depois perdoei-lhe.
Autógrafos? É algo que nunca consegui compreender. Qual o interesse em ter uma assinatura de alguém só porque esse alguém é famoso? Creio que só pediria um autógrafo se fosse a Deus, e unicamente para ter uma prova física da sua existência. A obsessão das pessoas por ídolos é algo que sempre me ultrapassou. Por mais brilhante que possam parecer, são independentes da obra que criam, tal como uma mãe é um ser independente do filho que gera dentro de si. No momento em que a obra é produzida, separa-se do seu criador, e a obra passa a valer por si, e quem a criou torna-se o casulo inútil de onde a borboleta saiu. Ela continuava a falar.
- A senhora gosta de ler, não gosta? Vejo que tem aí mais livros. Quem é o seu escritor preferido?
O Paul Sheldon é que não é, de certeza!
- Não tenho escritores preferidos. Tenho livros preferidos. – A minha resposta parece confundi-la. – Por exemplo, gostei muito de ler o American Psycho, mas o autor não me diz nada. Aliás, nem sei sequer se é alto ou baixo, nunca me dei ao trabalho de ver sequer uma foto dele.
- Mas… Não fica empolgada quando vê um livro novo dele? E as personagens? Não acha que retratam a sua vida?-
Para dizer a verdade, não. Quando estou a ler um livro, leio a história que lá está. O autor pode escrever bem ou mal, é só isso. O que é digno de admiração são as obras, não as pessoas.
Ela ficou calada, a pensar no que acabara de lhe dizer, e depois contrapôs:
- Mas se uma obra é genial, isso não significa que o seu criador é um génio?
- A genialidade está na cabeça das pessoas. A arte, seja ela qual for, é subjectiva, e isto inclui a literatura.
Annie não pareceu ficar satisfeita com a resposta. Calou-se, colocou-me um penso por cima das cicatrizes e disse-me:
- Já está, pode vestir-se.
Girou nos calcanhares e foi-se embora, não sem antes dar uma última olhadela ao livro, um olhar embevecido e apaixonado.
28/04/2009
A ouvir: Wrong, Depeche Mode

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