O Teté

Para uma criança criada numa família supersticiosa e medrosa, o Teté tinha um ar assustador. Diziam que ele era maluco, e os malucos são sempre perigosos. De cada vez que o via, fugia: com peso a mais, lábios muito grossos, rosto rubicundo e olhos aterradores, esbugalhados, escuros e brilhantes, de uma idade que para mim era indeterminada mas que lá no fundo sabia ser pouca. Diziam-se imensas coisas acerca dele, que era doido, que atacava as pessoas, que era perigoso, enfim, tudo aquilo que normalmente as pessoas ignorantes dizem acerca das pessoas com deficiência mental. Influenciada pelo que me diziam, fugia do Teté como o porco da faca. Se o visse na rua, atravessava para o outro lado, quase a tremer de medo. «Ele é maluco, foge dele», insistiam. E eu fazia o que me mandavam.
Um dia, no aniversário do meu irmão mais velho, o Teté apareceu lá em casa. O meu irmão tinha-o convidado. Tenho uma memória vívida, mas talvez falsa, de nessa tarde a minha mãe ter entrado pela sala adentro furiosa porque a coelha preta e branca que parira nove coelhinhos na semana anterior tinha morrido, mas devo estar enganada porque recordo-me que no dia da morte da coelha estava muito calor (aliás, foi por isso que a bicha bateu a bota) e o meu irmão faz anos em Janeiro. Adiante. Recordo-me nitidamente de ver o Teté sentado numa cadeira junto à porta que dava para o corredor, com uma camisola preta de gola alta, barba de vários dias, com os olhos escuros muito abertos e brilhantes, a boca grossa entreaberta e os lábios húmidos, com um copo de Frisumo na mão, e de as pessoas lhe perguntarem se ele estava bem e de ele responder a dizer que sim com a cabeça repetidamente, «eu porto-me bem, eu porto-me bem, o Teté porta-se bem», numa litania ininterrupta. Ia-o observando pelo canto do olho, fingindo que admirava o bolo coberto com glacê branco e cor-de-rosa e bolinhas prateadas, uma inovação (em 1982 nem sequer havia continentes nem modelos nem jumbos para comprar bolos de aniversário, só pingo doce e mesmo assim era no Porto) e nesse dia percebi finalmente que o Teté era uma pessoa, não um monstro aterrador como me diziam que era, uma pessoa de carne e osso, sensível como qualquer outra — talvez mais —, que comia bolo com glacê branco e cor-de-rosa e bebia Frisumo como qualquer jovem normal da idade dele, e deixei de ter medo dele.
Os anos foram passando e fui deixando de me cruzar na rua com o Teté. Um dia, penso que igualmente em Janeiro, soube pela minha mãe que tinham encontrado o corpo dele na praia do Furadouro, gelado e roxo. Ao que parecia o Teté tinha morrido de hipotermia, e apesar de nunca ter falado sequer com ele, não consegui evitar sentir-me triste por saber que ele tinha morrido de frio, e ao mesmo tempo zangada com todas as outras pessoas do mundo que permitiram que alguém morresse de frio, e por saber que o Teté morrera sozinho, como um animal. Penso que nem quarenta anos tinha.
O Teté não era maluco. Tinha uma deficiência mental — nunca soube qual era. Porém, as pessoas tratavam-no como se ele tivesse a peste, como se ele fosse de facto louco e a dita loucura fosse contagiosa. Mas as deficiências não são contagiosas, a irracionalidade das pessoas é que é. Tenho pena de só ter aprendido isso naquela tarde, quando tinha cinco anos.
11/11/2009
A ouvir: Last Goodbye, Jeff Buckley

No comments:

Post a Comment