Sangue fresco

Ao ver no jornal a notícia de um acidente de autocarro há uns quantos dias fiquei com o estômago revirado, não por causa do acidente em si mas sim por ter visto nas fotografias que acompanhavam a notícia uma centena de mirones que assistiam à evacuação dos feridos e trabalhos de desencarceramento como se se tratasse de algum espectáculo, e sinceramente senti nojo, uma onda de náusea a percorrer-me por causa daquelas criaturas abjectas que ali estavam, por que carga de água estavam ali, qual é o gozo de estar a ver pessoas com braços decepados a jorrarem sangue, filhos a gritar pelas mães e mães a gritarem pelos filhos, a ver o sangue fresco a escorrer, se pelo menos ainda estivessem ali para ajudar, mas não, era apenas pelo prazer de ver o sangue fresco a correr, céus, qual é o gozo que dá ver uma coisa dessas, ainda há meses parei na A23 por causa de um acidente acabadinho de acontecer, tão fresquinho que ainda havia no ar uma nuvem de pó levantada pelo carro quando capotou e, à semelhança de alguns condutores, também nós parámos para tentar dar assistência, já havia alguém a telefonar para o 112, e uma ambulância de transporte de doentes também tinha parado e aberto as portas para tentarem fazer o que pudessem, enquanto outros ajudavam os passageiros a sair do carro e uns dois ou três se encarregavam do condutor que estava encarcerado lá dentro, e a certa altura aproximei-me de uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, a segunda pessoa a sair do carro, para lhe perguntar se ela estava ferida (aparentemente não tinha nada) mas a pergunta morreu-me nos lábios quando ela ergueu a mão direita, ou o que restava dela, uma visão grotesca sem três dos dedos cortados e a esguichar sangue, enquanto a palma da mão tinha sido literalmente arrancada de forma a conseguir ver os ossos e os tendões todos, e mesmo através da mão, e eis que ela começa a gritar desvairadamente «a minha mão! a minha mão!», um grito desesperado que me ficou gravado na memória, e eu ali pregada ao chão sem conseguir articular um som que fosse, com os olhos presos àqueles restos da mão dela, muda de choque, e senti-me envergonhada por não ter conseguido reagir e manter o sangue frio e dizer-lhe para levantar a mão para estancar o sangue e procurar um trapo para fazer um torniquete ou mesmo tentar acalmá-la, não, não fiz nada disso, fiquei ali gelada até ter começado a tremer e voltado para o meu carro com o rabo entre as pernas, a amaldiçoar-me por dentro por não ter sido capaz de ajudar, e por isso não consigo perceber o prazer que aquela gente sentiu ali a altas horas da noite, de pé, a assistir àquele espectáculo macabro de sangue a escorrer, como se fossem os romanos nas arenas, e acabei por concluir que mesmo que nos denominemos civilizados, evoluídos, no fundo não passamos de animais que se excitam com o cheiro e a visão do sangue, por mais que queiramos distanciar-nos das bestas não conseguimos, porque o gosto pelo sangue faz parte de nós, e talvez o voyeurismo e o gosto pelo sangue seja de facto aquilo que nos torna iguais às bestas.
04/11/2009
A ouvir: Mercy Seat, Nick Cave

No comments:

Post a Comment