Black and blue

Falava-se à boca cheia que a S. levava do namorado. Tinha mais dez anos que ela, divorciara-se da mulher e estava constantemente a pedir-lhe o dinheiro que ela ganhava a trabalhar enquanto estudava. Certo dia, ela apareceu na faculdade com os dois olhos enfeitados por manchas negras, a cara inchada. Perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido. «Bati contra uma porta», respondeu-me. «E magoaste os dois olhos?», insisti, olhando-a bem no fundo dos olhos, através das manchas que os cercavam e que nem a maquilhagem tinham conseguido disfarçar.
Ela encolheu os ombros, esboçou uma tímida tentativa de sorriso e baixou os olhos. «E como raio fizeste uma coisa dessas», insisti, «para teres feito esse serviço à cara? Bateste de frente, foi?»
Ela sorriu mas não respondeu. Depois, absorta com os meus próprios botões, acabei por esquecer o assunto e nunca mais lhe fiz perguntas.
Estava um calor de rachar. Ainda assim, a C. andava de gola alta, de mangas compridas e calças. O Sol convidava ao bronze, mas a C. estava cada vez mais pálida, cadavérica e com ar doente. Os olhos cada vez mais encovados faziam-me lembrar um coelho assustado. Uma conversa de circunstância com o guarda nocturno enquanto ambos esperávamos o autocarro deixou-me esclarecida.
«Estive quase para me meter», confessou-me ele, indignado. «Vi-a a correr por ali abaixo, e depois ele apareceu a correr atrás dela e deixou um empurrão e a rapariga caiu ao chão», disse-me, e depois deu uma passa no cigarro. «Depois deu-lhe dois pontapés e quando ela se levantou, ele deu-lhe uma bofetada e atirou-a outra vez ao chão.» Nova passa. «Filho-da-puta! Aquilo não se faz. Desgraçada da miúda!» Mais uma baforada de fumo, enquanto o ouço em silêncio, e a seguir diz, em jeito de desculpa: «Sabe, eu não me quis meter, entre marido e mulher não se deve meter a colher, mas meteu-me impressão vê-lo ali a bater na rapariga, e não poder fazer nada...»
Abanei a cabeça, sem saber o que dizer. Se tivesse presenciado a situação, talvez tivesse feito o mesmo, não sei. Mas a partir daí nunca mais consegui olhar para o P.S. sem sentir um nó de nojo misturado com raiva a apertar-me o estômago.
A R. tinha três cadeiras atrasadas. Nos primeiros dias da época de exames, o pai deu-lhe uma tareia tão grande que ela teve de ficar de cama durante duas semanas. Fugiu de casa. Anos de psiquiatras e caixas de fluoxetina depois, vi-a dias depois de uma biópsia que fez para tentar determinar um problema de saúde. Não parecia ter 25 anos, parecia ter mais 50 em cima. A certa altura vi na televisão que um homem tinha sido assassinado pela filha, em legítima defesa, no bairro onde ela morava. Só consegui voltar a respirar depois de ter falado com a R. para me certificar que não tinha sido nada com ela.

A A. estava a estudar juntamente com a P., cada uma na sua secretária. De súbito, vindo do nada, aparece o G., namorado da P., entra de rompante por ali adentro, agarra nela pelos cabelos, atira-a ao chão e desata aos pontapés a ela. Sempre na presença da A., uma miúda de 18 anos acabada de sair das saias da mãe, que ficou ali tolhida de terror, a pensar que provavelmente seria a próxima. Quando se fartou, foi-se embora. Mas a P. continuou a namorar com o G., e continuou a levar tareias.
Todas estas raparigas eram universitárias. Todas estas raparigas eram vítimas de violência extrema. Todas elas eram muito jovens.
E nunca ninguém levantou um dedo contra os seus agressores.

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