A brincar

Achei estranho que tivessem batido à porta quase às dez da noite, mas ainda assim fui abrir. Era a senhora Palmira, a vizinha de cima, que trazia duas bonecas enormes e muito sujas, uma em cada mão, penduradas pelos braços como se de crianças se tratassem. Tinha-as encontrado num dos quartos da casa da quinta em ruínas que a filha tinha comprado para restaurar, teve pena de as deitar no lixo, e então lembrou-se de as trazer para a minha mãe as dar a uma das minhas sobrinhas de dois anos para a miúda brincar.
Olhei para ela, depois para a minha mãe, e por último para as bonecas. Uma parecia uma senhora: cabelos castanho-escuros completamente empoeirados, um vestido de poliéster azul-turquesa com folhos de tule já meio comidos pelas traças, e de olhos azuis que abriam e fechavam, mas já sem pestanas. Os sapatos eram pretos, de plástico, uns sapatos normais de boneca. Tinha ar de ter aí uns vinte anos, a cara de borracha toda suja com os olhos azuis a fixarem-me. Era bonita, mas não me chamou a atenção.
A outra, essa sim, era uma boneca. Aos pulinhos de excitação, agarrei nela disposta a meter mãos à obra para a transformação total. A miúda podia ficar com a outra, mas esta ia ser minha, mais ninguém lhe ia meter as mãos. O meu entusiasmo era tal que arranquei a minha mãe à telenovela e arrastei-a comigo para cuidar da «menina», a minha fair lady. Sim, porque a segunda boneca assemelhava-se em tudo a uma menina de um ano e meio ou dois. A cara infantil de borracha estava suja como a da outra, e o cabelo, que lhe daria pelo queixo, era de um loiro platinado cinzento do pó de da fuligem acumulados durante anos de abandono. Os olhos enormes, castanhos, também abriam e fechavam, e a boca estava tapada por uma chupeta de plástico cor-de-rosa, daquelas que em tempos devem ter feito a boneca chorar ao ser retirada. Trazia um vestido de algodão que parecia ser branco, embora naquele momento estivesse castanho e sujo, com mangas de balão e bordados cor-de-rosa, umas meias que há muitos anos tinham sido brancas e uns sapatos cor-de-rosa de plástico maleável — ou seria borracha? Não identifiquei correctamente o material. Seja como for, eram gigantes, o equivalente a um tamanho 21 ou 22. O vestido estava imundo, com manchas castanhas por causa das pilhas do mecanismo para chorar que tinham derretido e vertido o líquido.
Arregacei as mangas e meti-me ao trabalho. Despi-lhe o vestido e, com a ajuda de uma chave de fendas, arranquei o mecanismo incómodo, e as pilhas lá estavam, completamente calcinadas. Depois de limpar a zona com o mesmo zelo de um enfermeiro a limpar uma ferida, voltei a colocar a tampa e passei para o resto do corpo. A minha mãe olhava para mim, entre divertida, confusa e intrigada, e seguia as minhas indicações. Lavámo-la como pudemos, esfregámos as manchas mais teimosas, até que a boneca ficou limpa. Embalada, lavei-lhe o cabelo com champô que cheirava a maçãs verdes. Eu e a minha mãe ríamos com a brincadeira, e referíamo-nos à boneca como a menina, a bebé. Enquanto eu me encarregava da «menina» e lhe esfregava os pontos mais críticos e encardidos com uma escova de dentes velha embebida em Cif, ela tratou de por as roupas dela em lixívia para recuperarem a brancura original.
Depois da boneca estar lavada e seca, fomos procurar roupas para lhe vestir. As da Teresinha eram-lhe pequenas — a Teresinha tinha o tamanho de um bebé de seis meses, e demos-lhe esse nome porque no babete que trazia ao pescoço estava escrito tiernecita, e com os meus seis anos da altura Teresinha pareceu-me um nome mais aceitável. Porém, esta era do tamanho da minha sobrinha, uma miúda de dois anos, e a tarefa foi mais complicada. Acabámos por deixá-la embrulhada numa toalha velha até o vestido branco com bordados cor-de-rosa e mangas tufadas estar seco e passado a ferro, e o retoque final foram os dois ganchinhos que fui comprar propositadamente para lhe meter no cabelo.
O resultado final superou todas as expectativas, e toda a gente que a via ficava estupefacta com a boneca, principalmente a senhora Palmira, que entretanto se deve ter arrependido de ma ter dado. Eu, de cada vez que olhava para ela, pensava que aquela noite tinha sido a única vez em que me recordava de ter brincado com a minha mãe, e que tinha vinte e dois anos quando isso aconteceu.
31/08/2009
A ouvir: Alive, Pearl Jam

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