Acerca dos rissóis

Quando era miúda e andava aí na terceira classe, inventei que precisava de um caderno para a escola - na altura o que eu contava eram os tostões, não os minutos, e daí ter recorrido a uma mentirinha para levar a minha avante - e lá consegui que me dessem autorização para ir à loja do Meco moleiro comprar um caderno A5 pautado, que tinha uma capa com um casal de ratinhos da Disney, o Bernardo e a Bianca, e lá voltei toda contente e saltitante para casa com o meu tesouro, e de seguida enfiei-me no quarto a escrever com a minha caligrafia hesitante de quem só tem oito anos, quis escrever um livro de contos (já nessa altura tinha a mania que sabia escrever e mesmo sem saber o que era o prémio Nobel ambicionava ganhar um) e o primeiro conto era sobre uma andorinha que se apaixonava por um pardal e a maior parte da história era a descrever o banquete do casamento, na minha cabeça se uma carocha podia casar com um rato e os porcos construir casas, porque não uma andorinha andar embrulhada com um pardal, se eram ambos pássaros e eu sabia que os burros volta e meia metiam-se com as éguas e daí a origem das mulas, e o que dizer dos ligres, resultado do cruzamento de leões com tigres, enfim, naquela idade tudo me parecia possível, bom, de volta ao banquete de casamento os pardais e as andorinhas tinham ao seu dispor uma série de iguarias, e entre elas estavam os rissóis de minhoca, e a certa altura, não sei como, esse caderno acabou por ir parar às mãos da minha professora, que ficou surpreendidíssima com o facto de eu ter inventado algo tão imaginativo como aves a comerem rissóis de minhoca, mas nunca tive coragem de dizer que tinha tirado essa ideia de um episódio do Sítio do Picapau Amarelo, de uma conversa entre a Emilinha e a Narizinho acerca de uma colónia qualquer de formigas, e isso sempre me pesou um bocado na minha consciência, particularmente de cada vez que olhava para a boneca Emilinha que a senhora Carolina me tinha oferecido no Natal e que estava sentada em cima da minha cama a fitar-me com ar acusador, «plagiadora, a ideia dos rissóis foi minha», não sei porque diabos me fui lembrar agora dessa história dos rissóis, deve ser por causa de nos dias de hoje já não haver nada de novo e de tudo ser um aproveitamento de coisas do passado, é como se de um momento para o outro todos nos tivéssemos apercebido de que os recursos ao nosso dispor são limitados e que temos de reutilizar os que há, sejam eles materiais ou ideias, já não sei o que foi feito desse caderno com o Bernardo e a Bianca na capa, mas a boneca ainda continua algures na arrecadação no sótão pronta para a qualquer instante me lembrar que não fui eu quem inventou os rissóis de minhoca.

22/01/2009

A ouvir: Everyday is exactly the same, Nine Inch Nails

No comments:

Post a Comment