A idade da inocência

Quando tinha aí uns catorze anos e ainda estava naquele limbo entre a infância e a idade adulta chamado adolescência, eu e a minha mãe regressávamos de casa da minha tia, e ao passar em frente ao hospital que ficava em caminho, fomos abordada por uma miudinha que não deveria ter mais do que sete a oito anos, e a pequena veio ter connosco muito aflita a perguntar-nos onde era a entrada para as urgências, e quando lhe perguntei se ela estava bem, ela olhou para mim com os olhos rasos de água, e mostrou-me um passarinho que tinha entre as mãos e disse-me «ele está a morrer e quero salvá-lo», e confesso que fiquei sem palavras, mas a minha mãe lá lhe explicou que os hospitais não servem para tratar pardais que caem do ninho, servem para tratar pessoas, ou pelo menos deveriam servir, já que há alguns que nem isso, mas adiante, não vou bater mais no ceguinho, voltando à menina e ao pássaro, desconheço o que foi feito deles, provavelmente o bicho morreu e a miúda ficou triste e já nem se lembra que um dia abordou duas desconhecidas porque queria levar um pardalinho ao hospital, mas eu como tenho memória de elefante lembro-me, e agora ao ver os miúdos a brincarem com os tamagoshis e com as pixel chicks e com todas essas bonecadas virtuais pergunto-me como seria se esses miúdos se deparassem com um pardalinho que caiu do ninho, será que iriam tentar levá-lo ao hospital, e acho que talvez não, essa idade já se perdeu, a idade em que acreditamos que se levarmos um pássaro moribundo ao hospital poderemos salvar-lhe a vida, e é certo que essa idade da inocência é um pau de dois bicos, quando se é inocente acredita-se em tudo, que se engolirmos uma pastilha elástica ela nos vai colar as tripas, ou se formos a Guimarães as nossas pernas ficam lá para fazer cabos de facas, ou outro daqueles mitos estapafúrdios mas que tornavam a vida mais misteriosa e uma descoberta constante, e hoje fico um pouco triste por ver que já não há nada a descobrir e que até o meu monstrinho das bolachas de dois anos já sabe coisas como «se carregar no botão vermelho do comando a televisão liga-se ou desliga-se», enfim, com a perda da idade da inocência é um pouco como se a própria vida perdesse um pouco da sua magia.
12/02/2009
A ouvir: Leave out all the rest, Linkin Park

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