Rest in Peace

Há pessoas cuja existência nos passa completamente despercebida até ao dia da sua morte, dia esse em que alcançam a fama, e o Luís Miguel era uma dessas pessoas, era um rapazinho que andava na mesma primária que eu e que numa tarde de Santo António foi atropelado por um carro à porta de casa pondo fim à sua vida anónima de oito anos, e é curioso porque nunca reparara nele e subitamente morre e torna-se imortal, imortal ao ponto de vinte e tal anos depois de ter morrido há alguém que se lembra da morte dele num texto de um blogue qualquer, e mesmo não me recordando dele lembro-me do funeral, talvez por ter sido a primeira vez que fui a um, e se hoje é politicamente incorrecto obrigar crianças de seis anos a ir a um funeral, todas vestidinhas de branco e com um cravo branco na mão para deixar ao coleguinha morto, na altura não era, e lá fomos todos em fila indiana de cabeça baixa com a flor murcha do calor a tombar-nos das mãozinhas, tivemos todos de passar defronte do caixão e olhar bem para a cara dele num exercício mórbido de prevenção rodoviária, «olha-bem-para-a-cara-do-Luís-Miguel-se-ele-não-tivesse-saído-de-casa-a-correr-sem-olhar-para-os-lados-não-tinha-morrido», e depois ainda nos obrigaram a ir atrás do caixão até ao cemitério, e recordo-me de uma mulher a desmaiar e dos gritos das pessoas que lá estavam, certamente da família dele, para quem o Luís Miguel não era um rapazinho qualquer, mas sim filho, irmão, neto, sobrinho ou amigo, não sei porque diabos nunca consegui esquecer-me da morte do miúdo se nem sequer o conhecia, enfim, talvez me tenha vindo agora à cabeça por causa do dia dos finados, das romarias aos cemitérios para visitar as sepulturas de pessoas que mal conheciam em vida mas fica bem ir lá deixar umas velinhas, ou então as que se recusam a deixar os mortos morrer e que preferem viver no passado porque é mais fácil enfrentar a dor, eu, pessoalmente, odeio cemitérios, são lugares aonde qualquer um de nós só deveria ir uma vez, a definitiva, fazem-me lembrar aquilo que quero esquecer, e que é a certeza e a inevitabilidade de, mais cedo ou mais tarde, o que aconteceu ao Luís Miguel ir acontecer a todos e a cada um de nós.
01/11/2008
A ouvir: Stairway to Heaven, Led Zeppelin

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