O fato castanho com uma risquinha preta

Entrei no quarto e fechei a porta atrás de mim para abafar os gritos e os choros de dor que ecoavam por toda a casa. Avancei em câmara lenta, muito devagar, passo a passo, ou se calhar flutuei, não me lembro de ter mexido as pernas para andar. Em silêncio, dirigi-me ao guarda-fatos e abri-o. Percorri com a ponta dos dedos todas as peças que lá estavam penduradas até encontrar o que pretendia. Tirei o cabide com o fato castanho com uma risquinha preta que usaste apenas uma vez. Com cuidado, pousei-o em cima da cama, não queria amarrotá-lo para que não parecesses desmazelado. Depois procurei a camisa. De seda cor de pérola, feita por medida. Havia muitas, e tinham-me dito para levar uma outra, mas quis aquela, não sei se por vontade própria ou se por estar numa espécie de transe. Escolhi um cinto ao acaso, o primeiro que me veio à mão. Depois foi a vez de abrir a gaveta da roupa interior, aquela que eu nunca gostava de abrir quando me calhava ter de arrumar as roupas da casa. Era quase uma profanação abri-la, e peguei nas primeiras coisas que me vieram à mão, sempre com a respiração suspensa, umas cuecas azuis, umas meias castanhas e uma camisola interior branca porque estava frio, e fechei-a rapidamente, como se receasse que algum monstro saísse dali a qualquer instante. Fui buscar os sapatos. Castanhos cor de mel, aqueles de que mais gostavas. Pensei por instantes se ainda te serviriam, mas desviei a minha atenção para a peça que faltava. A gravata. Por mais que me esforce, não me consigo lembrar da gravata. Mesmo tendo-se passado dezoito anos desde esse dia, recordo-me do cheiro do after-shave que emanava das roupas, das cores, da textura do tecido do fato, do toque sedoso e do brilho da camisa, mas não consigo recordar-me de como era a gravata, nem mesmo se tentar evocar a imagem mais dura, aquela em que estavas deitado no caixão por entre flores brancas.
Juntei tudo. Pendurei a camisa juntamente com o fato, enrosquei a gravata no cabide, enfiei o par de meias dentro de um dos sapatos e agarrei em tudo, sempre com muito cuidado para não amarrotar, e dirigi-me à porta para entregar o saque. Do outro lado esperava-me o cangalheiro que te iria vestir pela última vez.

17/12/2008
A ouvir: It's been a while, Staind

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