Da importância de um caixote feio

Não sei porquê mas hoje lembrei-me da velha televisão a preto-e-branco da Blaupunkt, um caixote feio que nos meus quatro anitos parecia enorme, com botões em que tínhamos de carregar de cada vez que queríamos mudar do 1º para o 2º canal, exacto, é verdade, na altura não tínhamos aquele problema do Springsteen em 57 channels and nothing on, era o 1 ou o 2, mais nada, e é curioso que só me lembre do último dia em que essa Blaupunkt esteve lá em casa, recordo-me de estar a dar o último episódio de uma telenovela qualquer chamada Pai não sei das quantas, em que havia uma tal de Maria Preta que trabalhava num cabaré e eu via aquelas lantejoulas e penas e plumas e imaginava como seria se a televisão as mostrasse a cores, que pena ela só vir no dia seguinte, menos vinte e quatro horas antes e eu teria visto todas aquelas cores, que chatice, assim só vi o jegue do Nezinho ataviado com fraldas e o prefeito Odorico Paraguaçu a bradar «poooovo dji Sucupira», e essa televisão a cores era uma Oliva, produzida na altura em que aquilo ainda não era uma ruína pasto para agarrados e onde se faziam televisões, torneiras e máquinas de costura, e também tinha botões para mudar do 1º para o 2º canal, comandos, o que é isso, enfim, a Blaupunkt era uma espécie de símbolo da família, porque segundo os anais da história familiar essa televisão impediu que o meu pai emigrasse para França — o argumento para os meus irmãos não estrebucharem era que ia ganhar dinheiro para comprar uma televisão, tida como a oitava maravilha do mundo para os miúdos pequenos que eram na altura, e vai a minha mãe cala-se muito caladinha e pela primeira e única vez na vida comprou uma coisa a prestações e mandou entregá-la lá em casa para gáudio da criançada, estás a ver, já não tens de ir para França para se comprar uma televisão, deixando-o sem argumentos, enfim, é curioso pensar como é que um caixote feio como aquele tinha tanta importância na vida das pessoas, com toda a gente a reunir-se em volta do aparelho observando um silêncio religioso, chiu, está a dar a telenovela, cala-te, deixa-me ouvir as notícias, quando hoje em dia a televisão serve muitas vezes de ruído de fundo, de companhia, quase como o Chico, o papagaio da minha madrinha que morreu de ataque cardíaco durante um mini-tufão que destruiu a marquise onde a gaiola dele estava, que não dizia nada de jeito mas estava ali, presente. O mais engraçado e irónico disto é que me lembro perfeitamente da Maria Preta e do Odorico Paraguaçu de há trinta anos, mas não me recordo de uma única imagem que tenha visto ontem na televisão (Samsung, já agora).

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