Os vagabundos de Rodari

Numa época em que o dinheiro era escasso e os livros um bem quase de luxo, a biblioteca municipal era a minha segunda casa, e foi lá que certo dia, teria eu uns onze anos, talvez, deparei com um livrinho pequeno intitulado Pequenos Vagabundos, de um autor italiano chamado Gianni Rodari. Pela contracapa, era a história de três crianças sem-abrigo, o Domenico, o Francesco e a Anna, que (sobre)vivivam numa terrinha junto aos Apeninos, a mesma região de onde viera o Marco dos desenhos animados. Fascinada com o Constantino do Redol, com o Ginete e o Gaitinhas do Soeiro, com o Pedro Bala do Jorge Amado, com o Zezé do José Mauro de Vasconcelos, decidi levar os vagabundos comigo para casa e também o Domenico, o Francesco e a Anna me fascinaram. 
Exceptuando o nome das personagens, não me recordo de nada da história - a impressão que Pequenos Vagabundos causou em mim foi de tal maneira forte que obliterou tudo o resto, ficando apenas a emoção que senti ao ler aquele livro.
Contudo, o livro não era meu, e por mais que quisesse manter o Domenico, o Francesco e a Anna comigo, tive de o devolver à biblioteca, ainda que por vezes passasse pela estante onde o livro estava e lhe pegasse para dizer olá aos três vagabundos.
O tempo passou mas os vagabundos ficaram-me na memória, e, anos depois, fui novamente à procura deles para os trazer comigo, mas o livro esgotara entretanto. De quando em quando fazia um raide pelos sites de leilões ou por alfarrabistas para tentar encontrar os vagabundos, mas sempre sem sucesso.
Isto até um sábado soalheiro de Dezembro em que um passeio a três e um «Mãe, estou cheio de fome, quero lanchar» me fizeram entrar num café/alfarrabista na rua da Madalena. Ao passar os olhos pelas estantes de livros antigos à venda, vi uma tirinha fininha daquele azul inconfundível. Com o coração a bater mais depressa, aproximei os olhos da estante ainda sem acreditar no que estava a ver. E lá estava o livro, ao fim de tantos anos. Com as mãos a tremer, peguei-lhe, e o reencontro com aqueles três miúdos deixou-me a chorar como uma tonta. Na mesa do café, eles olhavam boquiabertos para mim ao verem-me com um livro velho na mão, a abanar a cabeça enquanto repetia «não acredito não acredito não acredito» e com as lágrimas a correrem-me pela cara. 
Nesse dia voltei a trazer os vagabundos para casa, com a certeza de que não terei de perdê-los novamente de vista. Agora não estão nas ruas de uma terrinha junto aos Apeninos, estão na segurança da minha estante ao lado do Constantino, do Ginete, do Gaitinhas, do Pedro Bala e de outros miúdos como eles que tiveram de crescer demasiado cedo.