Cheira mal

Uma terrinha qualquer algures nos States vai submeter a votação pública uma proposta que visa impedir que os funcionários estatais usem perfume no local de trabalho, e se por momentos pensei em como uma lei destas me teria dado jeito no 11º ano para não ter de gramar com o fedor a Tresor da Emília Leal de cada vez que vinha às carteiras corrigir os trabalhos de Técnicas de Tradução, por outro não pude evitar rir-me com a ideia de se usar o dinheiro dos contribuintes para um fim tão ridículo, quer dizer, se é para desperdiçar fundos públicos, é melhor fazê-lo em ordenados milionários para gestores públicos que não fazem a ponta de um corno, ao menos sempre se incentiva o consumo, nem que seja de gasolina para alimentar os carros de alta cilindrada, mas estava eu a dizer que o fundamentalismo democrático quer proibir as pessoas de usarem perfume no local de trabalho, e pergunto-me aonde é que isto irá parar, qual o limite para esta gente, eu não gosto de saias de balão e daquelas calças à dread com os fundilhos à altura dos joelhos, será que posso sugerir um referendo para proibir as pessoas de as usarem, e já agora os ténis com luzinhas que piscam e as correntes de ouro maciço penduradas ao pescoço, as T-shirts com fotografias de wrestlers, e sapatos vela, detesto sapatos vela, bem que poderiam fazer referendos para proibir essa coisada toda, para quê só os perfumes, se a nossa liberdade termina aonde começa a liberdade dos outros, porque é que tenho de gramar com o fedor a perfume de outra pessoa, enfim, é bem mais fácil proibir, porque não?, eu estou no meu direito de não ter de ficar enjoada com o cheiro a Tresor, mas a questão fundamental é que a Emília Leal tinha o direito de o usar mesmo tratando-se de algo nauseabundo na minha opinião, enfim, já na altura em que tive de ler o Macrotendências achei um absurdo que tudo e mais alguma coisa fosse submetido ao escrutínio público, desde a cor da iluminação de Natal da terrinha ao horário de funcionamento da única padaria do bairro, isto no meu entender parece-me o poder da democracia levado ao extremo, enfim, para um sítio que se gaba de ser o berço da liberdade de expressão, esta história de querer proibir o uso de perfume no local de trabalho cheira muito mal.

Leitor nº 2555

Hoje de manhã ao colocar o colar ao pescoço lembrei-me da Sara, que foi quem mo ofereceu de prenda de aniversário há 20 anos, e pus-me a pensar que o melhor presente que ela me deu não foi este colar, mas sim no dia em que — tinha eu sete anos e ela oito — a Sara entrou em minha casa e me perguntou se eu queria ir com ela à biblioteca. Disse-me que era aquele edifício atrás da Câmara e ao pé da farmácia do Zeca, sabes, em frente à creche, e lá há montes de livros que podemos trazer para casa para ler. Percorri com ela os cinco minutos que separavam as nossas casas do local e ao entrar lá a primeira impressão que tive foi o enorme respeito reverencial imposto pelo silêncio. Fomos ao balcão e a dona Graça deu-me uma ficha para eu preencher com a minha caligrafia tosca de segunda classe e a seguir deu-me um pequeno cartão cor-de-rosa com o meu nome e o número 2555 que colocou numa bolsinha de plástico dizendo-me que era o meu número de leitora. Ter aquele cartão fez-me sentir importante, como se em vez de ser apenas uma miúda de sete anos fosse alguém com acesso a um mundo restrito e privilegiado, uma espécie de reino dos céus.
A partir daí a Biblioteca Dr. Renato Araújo tornou-se a minha casa. As peregrinações diárias sucediam-se, às vezes mais de uma vez por dia, para percorrer as estantes com olhos ávidos e apoderar-me dos tesouros da Sophia, do António Torrado, da Ilse Losa, da Matilde Rosa Araújo, e outros tantos, dos livros do Pequenu que a minha mãe considerava gigantescos, «se leres isso tudo ainda vais acabar por ter de usar óculos», e depois de escolher o saque do dia preenchia o pequeno papelinho verde da requisição com os números das cotas, só podes levar três, dizia-me a dona Graça, e eu fingia que não ouvia, metia sempre mais em cima do balcão e ela voltava a insistir, são só três, já sabes, e eu ia a correr com eles para casa, enfiava-me no quarto e lia, lia como se o mundo fosse acabar, lia como se tivesse medo que o livro me pudesse ser roubado a qualquer momento, e a seguir ia trocar aqueles três por outros, e a paciente dona Graça dizia-me só podes levar três por dia, e eu fazia o meu melhor sorriso de súplica com ar de cachorrinho, mas ela era inflexível, são as regras, não podes levar mais de três por dia, e eu amaldiçoava interiormente aquele número odioso e ia buscar mais livros à estante e sentava-me diante de uma das enormes mesas de madeira escura e pesada que cheiravam sempre a óleo de cedro até a dona Graça vir ter comigo e dizer-me vamos fechar, tens de ir embora, e eu levantava os olhos e via que o tempo voara sem eu dar por isso. Lembro-me de cada cadeira, de madeira escura com assentos de napa verde-azeitona, das estantes para adultos — só podes levar livros dali quando fizeres doze anos, e volta e meia tentava levar um mas era sempre apanhada, já te disse, estes livros não são para a tua idade, mas eu fazia batota e ficava a lê-los lá dentro, a dona Graça disse que eu não podia levá-los para casa mas não que não os podia ler —, das mesas escuras onde meia dúzia de gatos pingados se debruçavam sobre os seus próprios tesouros ou escrevinhavam em cadernos, do piano de cauda a um canto da sala coberto por uma lona cinzenta que só era destapado para os recitais de piano que por vezes surgiam noticiados n’ O Regional, da textura da alcatifa, até mesmo do chiado das dobradiças das portas ao abrir, da curiosidade despertadas pelas escadas que iam para o primeiro andar, o que haveria lá em cima, lembro-me das estantes de poesia e das discussões amigáveis que tinha com o Alberto, um outro frequentador habitual que passava lá quase tanto tempo como eu, sobre qual o melhor, se Pessoa se Eugénio, a Florbela e uma vez mais a Sophia, e lembro-me de pensar que um dia também quero escrever assim, um dia quero ler todos os livros que existem no mundo, um dia vou ter um paraíso como este.
Hoje já não vou à Biblioteca Dr. Renato Araújo, mas o presente que a Sara me deu deixou-me uma marca indelével que me mudou para todo o sempre. E ocorreu-me que nunca tinha agradecido à Sara por me ter levado a um mundo completamente novo.

Obrigada, Sara.