Foi assim que aconteceu

Queres saber como foi, meu amor? Eu conto-te. Primeiro tiveram de me espetar a agulha para meter o soro e não estavam a conseguir, e só ao fim de mais de uma hora e depois de me terem deixado a mão toda esburacada é que lá conseguiram enfiá-la, estás a ver este sítio aqui, este pontinho escuro na parte de dentro do pulso?, foi aqui, e a seguir levaram-me para outro sítio, e quando lá entrei fui tomada por um medo irracional — acho que medo irracional é um pleonasmo, todos os medos são irracionais — , talvez tivesse tido do frio que fazia lá dentro do bloco operatório, mas arrepiei-me toda e baixei a cabeça e disse baixinho para ninguém ouvir «tenho medo», e depois espetaram-me outra agulha, não te vou dizer aonde para não te assustares, sabes, amor, não te preocupes, era para não me doer quando estivessem a fazer a cesariana, e a partir daí começou tudo a ficar difuso, foi como se uma névoa me tivesse envolvido, ouvia as vozes mas as vozes eram abafadas pelas máscaras e não distinguia bem o que estavam a dizer, e virei os olhos para o aparelho ao meu lado que media a tensão arterial e ia vendo os números a descerem, a descerem, a descerem, e quando olhei e vi que marcava 59/38 (creio que nunca me irei esquecer desses dois pares de números e do medo que senti ao vê-los) assustei-me e a partir desse segundo começaram a subir outra vez, e foi quando me disseram que te ia ver e te levantaram por cima do pano verde, sabes, amor, da primeira vez que te vi não estavas como os recém-nascidos costumam estar cheios de sangue e líquido e gordura, não, estavas limpo, limpo e cinzento, e a tua cor encheu-me de terror porque durante uma fracção de milésimo de segundo pensei o pior, mas então tu mexeste os olhinhos e vi que afinal estava tudo bem e senti as lágrimas a escorrerem-me dos olhos para a cara ao ver aqueles dois pontinhos de luz, e a partir daí já mais nada me importou porque às 22 horas e 27 minutos do dia 31 de Outubro de 2006 passei a ter dois sóis na minha vida.

Da importância de um caixote feio

Não sei porquê mas hoje lembrei-me da velha televisão a preto-e-branco da Blaupunkt, um caixote feio que nos meus quatro anitos parecia enorme, com botões em que tínhamos de carregar de cada vez que queríamos mudar do 1º para o 2º canal, exacto, é verdade, na altura não tínhamos aquele problema do Springsteen em 57 channels and nothing on, era o 1 ou o 2, mais nada, e é curioso que só me lembre do último dia em que essa Blaupunkt esteve lá em casa, recordo-me de estar a dar o último episódio de uma telenovela qualquer chamada Pai não sei das quantas, em que havia uma tal de Maria Preta que trabalhava num cabaré e eu via aquelas lantejoulas e penas e plumas e imaginava como seria se a televisão as mostrasse a cores, que pena ela só vir no dia seguinte, menos vinte e quatro horas antes e eu teria visto todas aquelas cores, que chatice, assim só vi o jegue do Nezinho ataviado com fraldas e o prefeito Odorico Paraguaçu a bradar «poooovo dji Sucupira», e essa televisão a cores era uma Oliva, produzida na altura em que aquilo ainda não era uma ruína pasto para agarrados e onde se faziam televisões, torneiras e máquinas de costura, e também tinha botões para mudar do 1º para o 2º canal, comandos, o que é isso, enfim, a Blaupunkt era uma espécie de símbolo da família, porque segundo os anais da história familiar essa televisão impediu que o meu pai emigrasse para França — o argumento para os meus irmãos não estrebucharem era que ia ganhar dinheiro para comprar uma televisão, tida como a oitava maravilha do mundo para os miúdos pequenos que eram na altura, e vai a minha mãe cala-se muito caladinha e pela primeira e única vez na vida comprou uma coisa a prestações e mandou entregá-la lá em casa para gáudio da criançada, estás a ver, já não tens de ir para França para se comprar uma televisão, deixando-o sem argumentos, enfim, é curioso pensar como é que um caixote feio como aquele tinha tanta importância na vida das pessoas, com toda a gente a reunir-se em volta do aparelho observando um silêncio religioso, chiu, está a dar a telenovela, cala-te, deixa-me ouvir as notícias, quando hoje em dia a televisão serve muitas vezes de ruído de fundo, de companhia, quase como o Chico, o papagaio da minha madrinha que morreu de ataque cardíaco durante um mini-tufão que destruiu a marquise onde a gaiola dele estava, que não dizia nada de jeito mas estava ali, presente. O mais engraçado e irónico disto é que me lembro perfeitamente da Maria Preta e do Odorico Paraguaçu de há trinta anos, mas não me recordo de uma única imagem que tenha visto ontem na televisão (Samsung, já agora).