Penas de peru

Na semana passada um peru teve honras de primeira página e tornou-se vedeta em todo o mundo, uma espécie de Paul Potts ou Susan Boyle versão alada, e como tantos outros, o Courage estava destinado a ir parar à assadeira e a ser recheado com molho de arandos, à semelhança dos milhões e milhões de bichos da sua espécie que os americanos adoram consumir no dia de Acção de Graças (nunca consegui perceber este feriado americano, mas se fosse só isso que não percebi acerca desse «povo» estava eu bem), e o animalzito lá deveria estar resignado à sua sorte, tipo «gluglu,ok, estou no corredor da morte, engordaram-me gluglu e agora é a minha vez de ir ocupar o lugar legítimo dos perus na cadeia alimentar, gluglu, é este o meu destino, vou morrer para poder engordar ainda mais algum redneck obeso, mas desta vez estou um patamar acima dos meus irmãos perus, hehehe, eu, o grande Courage, vou alimentar aqueles humanos que moram naquela casa branca que tem um jardim relvado grande e umas colunas muito feias no frontispício, parece que mora lá gente importante, gluglu, não sei quem são as criaturas mas em todo o caso isso não me interessa, dentro em breve vão cortar-me o pescoço e ao fim da noite já estarei dentro das barrigas deles a ser derretido pelo suco gástrico», só que afinal o Courage foi um bicho cheio de sorte, naquele dia não morreu e não foi exibido numa mesa, assado, em cima de uma travessa de porcelana com mais anos de existência do que os próprios States - também não é preciso muito, diga-se de passagem -, estava eu a dizer que o Courage teve sorte porque afinal um dos gajos que mora naquela casa branca com colunas feias, um que pelos vistos tem o poder de decidir se alguém vive ou morre decidiu que o Courage deveria viver, e assim o bicho salvou-se de lhe cortarem o pescoço e de ir parar a uma assadeira no meio de batatinhas e de ser regado com molho de arandos, «bolas, não me importo de ser esventrado, depenado e recheado, mas o molho de arandos não, por favor, ponham-me antes molho de maçãs verdes, cheira melhor e não deixa nódoas tão feias», dizia eu que o Courage safou-se por agora, e digo por agora porque mais cedo ou mais tarde o bicho há-de efectivamente ir parar ao bandulho de algúem, seja do Obama ou de outro gajo qualquer, e o que é irónico nisto é que o Courage, que estava já conformado com o seu destino de peru que tem de morrer porque é a lei da natureza, os perus têm de ir parar à panela para que os humanos os possam comer, é certo e sabido que é assim (os vegetarianos que me perdoem mas é a pura verdade), e há milhares de humanos que não têm qualquer papel na cadeia alimentar, milhares de humanos que mataram e violaram e estropiaram e cometeram crimes inomináveis e que por esse motivo alguém decidiu que deveriam morrer, milhares de humanos nas cadeias americanas à espera que o seu destino final seja cumprido, mas o presidente Obama, o messias salvador da pátria e do mundo (isn't it the same?, perguntarão alguns), o Obama que até já levou sem saber muito bem como o Nobel da Paz para casa - tecnicamente a entrega será só no mês que vem, mas pronto, vocês percebem a que me estou a referir), o Obama preferiu indultar um peru, enquanto há gente nas cadeias à espera que ele tome uma decisão semelhante e que os salve da morte certa.
De facto, há perus com sorte.
30/11/2009
A ouvir: This is War, 30 Seconds to Mars

O Teté

Para uma criança criada numa família supersticiosa e medrosa, o Teté tinha um ar assustador. Diziam que ele era maluco, e os malucos são sempre perigosos. De cada vez que o via, fugia: com peso a mais, lábios muito grossos, rosto rubicundo e olhos aterradores, esbugalhados, escuros e brilhantes, de uma idade que para mim era indeterminada mas que lá no fundo sabia ser pouca. Diziam-se imensas coisas acerca dele, que era doido, que atacava as pessoas, que era perigoso, enfim, tudo aquilo que normalmente as pessoas ignorantes dizem acerca das pessoas com deficiência mental. Influenciada pelo que me diziam, fugia do Teté como o porco da faca. Se o visse na rua, atravessava para o outro lado, quase a tremer de medo. «Ele é maluco, foge dele», insistiam. E eu fazia o que me mandavam.
Um dia, no aniversário do meu irmão mais velho, o Teté apareceu lá em casa. O meu irmão tinha-o convidado. Tenho uma memória vívida, mas talvez falsa, de nessa tarde a minha mãe ter entrado pela sala adentro furiosa porque a coelha preta e branca que parira nove coelhinhos na semana anterior tinha morrido, mas devo estar enganada porque recordo-me que no dia da morte da coelha estava muito calor (aliás, foi por isso que a bicha bateu a bota) e o meu irmão faz anos em Janeiro. Adiante. Recordo-me nitidamente de ver o Teté sentado numa cadeira junto à porta que dava para o corredor, com uma camisola preta de gola alta, barba de vários dias, com os olhos escuros muito abertos e brilhantes, a boca grossa entreaberta e os lábios húmidos, com um copo de Frisumo na mão, e de as pessoas lhe perguntarem se ele estava bem e de ele responder a dizer que sim com a cabeça repetidamente, «eu porto-me bem, eu porto-me bem, o Teté porta-se bem», numa litania ininterrupta. Ia-o observando pelo canto do olho, fingindo que admirava o bolo coberto com glacê branco e cor-de-rosa e bolinhas prateadas, uma inovação (em 1982 nem sequer havia continentes nem modelos nem jumbos para comprar bolos de aniversário, só pingo doce e mesmo assim era no Porto) e nesse dia percebi finalmente que o Teté era uma pessoa, não um monstro aterrador como me diziam que era, uma pessoa de carne e osso, sensível como qualquer outra — talvez mais —, que comia bolo com glacê branco e cor-de-rosa e bebia Frisumo como qualquer jovem normal da idade dele, e deixei de ter medo dele.
Os anos foram passando e fui deixando de me cruzar na rua com o Teté. Um dia, penso que igualmente em Janeiro, soube pela minha mãe que tinham encontrado o corpo dele na praia do Furadouro, gelado e roxo. Ao que parecia o Teté tinha morrido de hipotermia, e apesar de nunca ter falado sequer com ele, não consegui evitar sentir-me triste por saber que ele tinha morrido de frio, e ao mesmo tempo zangada com todas as outras pessoas do mundo que permitiram que alguém morresse de frio, e por saber que o Teté morrera sozinho, como um animal. Penso que nem quarenta anos tinha.
O Teté não era maluco. Tinha uma deficiência mental — nunca soube qual era. Porém, as pessoas tratavam-no como se ele tivesse a peste, como se ele fosse de facto louco e a dita loucura fosse contagiosa. Mas as deficiências não são contagiosas, a irracionalidade das pessoas é que é. Tenho pena de só ter aprendido isso naquela tarde, quando tinha cinco anos.
11/11/2009
A ouvir: Last Goodbye, Jeff Buckley

Black and blue

Falava-se à boca cheia que a S. levava do namorado. Tinha mais dez anos que ela, divorciara-se da mulher e estava constantemente a pedir-lhe o dinheiro que ela ganhava a trabalhar enquanto estudava. Certo dia, ela apareceu na faculdade com os dois olhos enfeitados por manchas negras, a cara inchada. Perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido. «Bati contra uma porta», respondeu-me. «E magoaste os dois olhos?», insisti, olhando-a bem no fundo dos olhos, através das manchas que os cercavam e que nem a maquilhagem tinham conseguido disfarçar.
Ela encolheu os ombros, esboçou uma tímida tentativa de sorriso e baixou os olhos. «E como raio fizeste uma coisa dessas», insisti, «para teres feito esse serviço à cara? Bateste de frente, foi?»
Ela sorriu mas não respondeu. Depois, absorta com os meus próprios botões, acabei por esquecer o assunto e nunca mais lhe fiz perguntas.
Estava um calor de rachar. Ainda assim, a C. andava de gola alta, de mangas compridas e calças. O Sol convidava ao bronze, mas a C. estava cada vez mais pálida, cadavérica e com ar doente. Os olhos cada vez mais encovados faziam-me lembrar um coelho assustado. Uma conversa de circunstância com o guarda nocturno enquanto ambos esperávamos o autocarro deixou-me esclarecida.
«Estive quase para me meter», confessou-me ele, indignado. «Vi-a a correr por ali abaixo, e depois ele apareceu a correr atrás dela e deixou um empurrão e a rapariga caiu ao chão», disse-me, e depois deu uma passa no cigarro. «Depois deu-lhe dois pontapés e quando ela se levantou, ele deu-lhe uma bofetada e atirou-a outra vez ao chão.» Nova passa. «Filho-da-puta! Aquilo não se faz. Desgraçada da miúda!» Mais uma baforada de fumo, enquanto o ouço em silêncio, e a seguir diz, em jeito de desculpa: «Sabe, eu não me quis meter, entre marido e mulher não se deve meter a colher, mas meteu-me impressão vê-lo ali a bater na rapariga, e não poder fazer nada...»
Abanei a cabeça, sem saber o que dizer. Se tivesse presenciado a situação, talvez tivesse feito o mesmo, não sei. Mas a partir daí nunca mais consegui olhar para o P.S. sem sentir um nó de nojo misturado com raiva a apertar-me o estômago.
A R. tinha três cadeiras atrasadas. Nos primeiros dias da época de exames, o pai deu-lhe uma tareia tão grande que ela teve de ficar de cama durante duas semanas. Fugiu de casa. Anos de psiquiatras e caixas de fluoxetina depois, vi-a dias depois de uma biópsia que fez para tentar determinar um problema de saúde. Não parecia ter 25 anos, parecia ter mais 50 em cima. A certa altura vi na televisão que um homem tinha sido assassinado pela filha, em legítima defesa, no bairro onde ela morava. Só consegui voltar a respirar depois de ter falado com a R. para me certificar que não tinha sido nada com ela.

A A. estava a estudar juntamente com a P., cada uma na sua secretária. De súbito, vindo do nada, aparece o G., namorado da P., entra de rompante por ali adentro, agarra nela pelos cabelos, atira-a ao chão e desata aos pontapés a ela. Sempre na presença da A., uma miúda de 18 anos acabada de sair das saias da mãe, que ficou ali tolhida de terror, a pensar que provavelmente seria a próxima. Quando se fartou, foi-se embora. Mas a P. continuou a namorar com o G., e continuou a levar tareias.
Todas estas raparigas eram universitárias. Todas estas raparigas eram vítimas de violência extrema. Todas elas eram muito jovens.
E nunca ninguém levantou um dedo contra os seus agressores.

Sangue fresco

Ao ver no jornal a notícia de um acidente de autocarro há uns quantos dias fiquei com o estômago revirado, não por causa do acidente em si mas sim por ter visto nas fotografias que acompanhavam a notícia uma centena de mirones que assistiam à evacuação dos feridos e trabalhos de desencarceramento como se se tratasse de algum espectáculo, e sinceramente senti nojo, uma onda de náusea a percorrer-me por causa daquelas criaturas abjectas que ali estavam, por que carga de água estavam ali, qual é o gozo de estar a ver pessoas com braços decepados a jorrarem sangue, filhos a gritar pelas mães e mães a gritarem pelos filhos, a ver o sangue fresco a escorrer, se pelo menos ainda estivessem ali para ajudar, mas não, era apenas pelo prazer de ver o sangue fresco a correr, céus, qual é o gozo que dá ver uma coisa dessas, ainda há meses parei na A23 por causa de um acidente acabadinho de acontecer, tão fresquinho que ainda havia no ar uma nuvem de pó levantada pelo carro quando capotou e, à semelhança de alguns condutores, também nós parámos para tentar dar assistência, já havia alguém a telefonar para o 112, e uma ambulância de transporte de doentes também tinha parado e aberto as portas para tentarem fazer o que pudessem, enquanto outros ajudavam os passageiros a sair do carro e uns dois ou três se encarregavam do condutor que estava encarcerado lá dentro, e a certa altura aproximei-me de uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, a segunda pessoa a sair do carro, para lhe perguntar se ela estava ferida (aparentemente não tinha nada) mas a pergunta morreu-me nos lábios quando ela ergueu a mão direita, ou o que restava dela, uma visão grotesca sem três dos dedos cortados e a esguichar sangue, enquanto a palma da mão tinha sido literalmente arrancada de forma a conseguir ver os ossos e os tendões todos, e mesmo através da mão, e eis que ela começa a gritar desvairadamente «a minha mão! a minha mão!», um grito desesperado que me ficou gravado na memória, e eu ali pregada ao chão sem conseguir articular um som que fosse, com os olhos presos àqueles restos da mão dela, muda de choque, e senti-me envergonhada por não ter conseguido reagir e manter o sangue frio e dizer-lhe para levantar a mão para estancar o sangue e procurar um trapo para fazer um torniquete ou mesmo tentar acalmá-la, não, não fiz nada disso, fiquei ali gelada até ter começado a tremer e voltado para o meu carro com o rabo entre as pernas, a amaldiçoar-me por dentro por não ter sido capaz de ajudar, e por isso não consigo perceber o prazer que aquela gente sentiu ali a altas horas da noite, de pé, a assistir àquele espectáculo macabro de sangue a escorrer, como se fossem os romanos nas arenas, e acabei por concluir que mesmo que nos denominemos civilizados, evoluídos, no fundo não passamos de animais que se excitam com o cheiro e a visão do sangue, por mais que queiramos distanciar-nos das bestas não conseguimos, porque o gosto pelo sangue faz parte de nós, e talvez o voyeurismo e o gosto pelo sangue seja de facto aquilo que nos torna iguais às bestas.
04/11/2009
A ouvir: Mercy Seat, Nick Cave