Bonito de ver

Há uns anos largos, ao vir da estação da CP da Cruz Quebrada a um domingo à tarde e a passar em cima da pontezinha sobre o Jamor para começar a subir a Estrada da Costa, reparei num casal de velhotes que estavam lá sentados num dos banquinhos que por lá havia, e recordo-me de por instantes ter ficado espantada com o cenário. Ambos de cabeças completamente brancas, ele nos sítios onde ainda tinha cabelo e ela com uma permanente irreprensível, ele de fato cor de café com leite, ela de vestido de malha clarinho e florido e sapatos de salto alto, ali os dois sentados, de mão dada, com os olhos mergulhados um no outro, como se não existisse mais ninguém no mundo, muito menos a rapariga que estava a olhar para eles fixamente do outro lado da estrada, e apesar de estar longe consegui ver a expressão de adoração nos olhos deles, aquela adoração de duas pessoas que viveram mais do que uma vida inteira juntos e que ainda assim cada dia sabe a pouco, querem mais, a cada dia que passa o amor aumenta, e a certa altura beijaram-se, como o casal apaixonado que efectivamente eram, e nunca me esqueci daquela cena, decerto já teriam netos, ou quem sabe bisnetos, e estavam ali aos beijos e arrulhar meiguices um ao outro como um casal de jovens com a vida inteira pela frente, e aquela imagem fez-me sonhar, ficou-me na cabeça como uma versão deturpada de O Beijo do Henri Cartier-Bresson, mas igualmente bela, um sinal de que o amor e a paixão não são coisas de velhos.

30/06/2009
A ouvir: Shine, Depeche Mode

Temor e tremor

Na quinta à noite, durante um dos ataques cada vez mais frequentes de insónias, pus-me a fazer zapping e parei no Hollywood, que estava a passar um filme francês chamado Temor e Tremor, e era sobre uma rapariga belga que ia trabalhar um ano para o Japão, a menina Amélie, que no fim do filme acabei por perceber que se tratava da Amélie Nothomb, a escritora, e que o filme era alegadamente autobiográfico, adiante, e as peripécias vividas pela moça na dita empresa, Yumimoto se não me falha a memória - ultimamente tem falhado mais do que a conta, daí não garantir se era mesmo Yumimoto ou Yamamono ou coisa parecida -, e a rapariga era de tal forma humilhada que quase parecia um filme de terror, foi brutalmente destratada por ter falado em japonês durante uma reunião onde entrara para servir cafés (sim, anda-se anos na faculdade, aprende-se a falar línguas dificílimas para tentar singrar no mercado de trabalho e depois vai-se servir café a um bando de idiotas malcriados e mal-encarados de fato e gravata), estava eu a dizer que a desgraçada perguntou aos mal-encarados se queriam café, em japonês, e por esse delito de lesa-majestade um dos superiores, o de terceiro grau se não estou em erro, arrastou-a por um braço e desancou-a, não tinha nada que ter falado em japonês, onde é que já se viu, uma estrangeira a falar japonês, que horror!, e a pobre contestou «mas vocês contrataram-me precisamente por eu falar japonês», o que desencadeou novo ataque de fúria, porque o chefe é que tem razão, e apesar de a submissão daquela gente, não só da menina Amélie como de muitos outros que lá trabalhavam, me ter provocado uma sensação de asco, continuei a ver aquilo, e surpreendeu-me que os japoneses não pudessem olhar para o rosto do chefe quando falavam com ele, tinham de estar de orelha murcha e olhos postos no chão, se o tipo dizia que era preto tinha de ser preto mesmo que fosse amarelo porque o chefe tem sempre razão, e a submissão e subserviência dos orientais sempre foi uma coisa que me complicou com os nervos e que nunca consegui entender, acho que por serem muitos têm de se tratar e ser tratados como autênticas formigas, há o líder, a formiga-rainha, e os outros são obreiros, ninguém conta, só a colónia, e se for preciso morrer pela colónia morre-se de bom grado, adiante, não quero estar a criticar culturas ancestrais mas enfim, e a tal Amélie, uma autêntica invertebrada, teve de ir trabalhar com uma fulana que ela achava linda de morrer mas que tinha tanto de bonita como de cabra sádica e perversa, a menina Mori, que lhe fez trinta por uma linha, mandou-a desempenhar tarefas cada vez mais degradantes ao ponto de a obrigar a ir fazer a manutenção das casas de banho, e eu a pensar «esta tipa deve ter-se esfalfado na universidade e agora está a substituir rolos de papel higiénico para os mal-encarados poderem limpar o cu», e a obstinação da menina Amélie em levar o contrato de trabalho até ao fim só era superada pela subserviência doentia que demonstrava, enfim, e não pude deixar de pensar que no mundo do trabalho já apanhei com alguns sacanas, e foi por uma unha negra que não levei com um cinzeiro na testa atirado por uma chefe tresloucada, mas não cheguei ao extermo da menina Amélie, e nem ao extremo daqueles japoneses da firma Yumimoto ou Yamamono ou lá o que seja, posso não ter cumprido os sonhos da infância, não ter escrito os livros que achava que iria escrever, ter o dinheiro que achava que iria ter, mas ainda conservo o meu cérebro, e isso ninguém poderá tirar-me, ninguém irá fazer de mim uma Amélie.
23/06/2009