Under pressure

Ao fazer aquela conversa de elevador com uma vizinha, do tipo «ai-estou-tão-cansada-o-dia-hoje-parecia-que-não-acabava-estou-cheia-de-sono», comentei que não tinha dormido bem nessa noite, ao que ela responde que não tem desses problemas, porque quando tem insónias toma um comprimido e pronto, soninho descansado, «ainda ontem tive de tomar um porque a minha filha ia hoje ter um teste de ciências e fiquei tão nervosa que não conseguia dormir e por isso tomei o comprimidito e pronto», deixando-me horrorizada, se uma mãe chega ao ponto de tomar calmantes porque a filha de dez anos tem um teste de ciências na escola como não será para a pobre criança, e lembrei-me de uma outra situação em que a mesma mãe pedia a Deus nosso senhor que protegesse a menina que ia ter um teste com o mesmo fervor de uma mãe que vê o filho partir para a guerra, e na altura, para além de ter ficado a pensar que a mulher era louca, pensei no martírio que a filha dela e milhões de outras crianças dos dias de hoje passarão com pais assim, crianças que quase têm de marcar os compromissos num blackberry com dois meses de antecedência, do tipo às cinco e meia aula de piano, às seis e meia de inglês, às oito natação, pausa para jantar, dez minutos para brincar e depois às dez e meia da noite aula de cálculo avançado ou de mandarim ou de ioga ou de técnicas de pintura surrealista ou uma coisa assim esquisita (para uma criança, subentenda-se), e como é que os miúdos de hoje aguentam isso, é certo que as crianças são mais fortes do que pensamos mas é um tal mandar criancinhas para os psiquiatras e metê-las a medicamentos, lembro-me que em miúda não havia nada destas coisas, em casa nem sequer sabiam quando eu tinha testes ou deixava de ter, nunca foi preciso mandar-me fazer o que quer que seja porque já tinha em cima de mim a pressão de ter de ir trabalhar para uma fábrica de sapatos se falhasse, isso sim, já disse e escrevi muitas vezes que o mundo está em versão fastforward e tudo acontece cada vez mais depressa e há cada vez mais pressão para fazer mais, mais rápido, melhor, mais barato, e sempre mais mais mais mais mais, as crianças têm de aprender tudo para depois não saberem nada, metem-nas em aulas disto e daquilo e de mais alguma coisa, mas na realidade se formos a ver não as ensinam a viver, porque estão de tal maneira pressionadas pelo mais e mais que se esquecem do que verdadeiramente importa, e não quero saber se daqui a uns anos o meu monstrinho das bolachas vai ser o próximo Nadal ou o próximo Eric Owen Moss ou o próximo Nobel da Literatura ou o novo Mozart, a coisa mais importante que lhe posso dar é o bem mais escasso que existe, que é o tempo para viver e ser feliz, sem pressas e sem pressões, e sem ter de aturar uma mãe a tomar calmantes de cada vez que ele faz um teste na escola ou a prometer ir a Fátima a pé se a menina tiver um bom no teste de educação física...
19-02-2009
A ouvir: I Grieve, Peter Gabriel

A idade da inocência

Quando tinha aí uns catorze anos e ainda estava naquele limbo entre a infância e a idade adulta chamado adolescência, eu e a minha mãe regressávamos de casa da minha tia, e ao passar em frente ao hospital que ficava em caminho, fomos abordada por uma miudinha que não deveria ter mais do que sete a oito anos, e a pequena veio ter connosco muito aflita a perguntar-nos onde era a entrada para as urgências, e quando lhe perguntei se ela estava bem, ela olhou para mim com os olhos rasos de água, e mostrou-me um passarinho que tinha entre as mãos e disse-me «ele está a morrer e quero salvá-lo», e confesso que fiquei sem palavras, mas a minha mãe lá lhe explicou que os hospitais não servem para tratar pardais que caem do ninho, servem para tratar pessoas, ou pelo menos deveriam servir, já que há alguns que nem isso, mas adiante, não vou bater mais no ceguinho, voltando à menina e ao pássaro, desconheço o que foi feito deles, provavelmente o bicho morreu e a miúda ficou triste e já nem se lembra que um dia abordou duas desconhecidas porque queria levar um pardalinho ao hospital, mas eu como tenho memória de elefante lembro-me, e agora ao ver os miúdos a brincarem com os tamagoshis e com as pixel chicks e com todas essas bonecadas virtuais pergunto-me como seria se esses miúdos se deparassem com um pardalinho que caiu do ninho, será que iriam tentar levá-lo ao hospital, e acho que talvez não, essa idade já se perdeu, a idade em que acreditamos que se levarmos um pássaro moribundo ao hospital poderemos salvar-lhe a vida, e é certo que essa idade da inocência é um pau de dois bicos, quando se é inocente acredita-se em tudo, que se engolirmos uma pastilha elástica ela nos vai colar as tripas, ou se formos a Guimarães as nossas pernas ficam lá para fazer cabos de facas, ou outro daqueles mitos estapafúrdios mas que tornavam a vida mais misteriosa e uma descoberta constante, e hoje fico um pouco triste por ver que já não há nada a descobrir e que até o meu monstrinho das bolachas de dois anos já sabe coisas como «se carregar no botão vermelho do comando a televisão liga-se ou desliga-se», enfim, com a perda da idade da inocência é um pouco como se a própria vida perdesse um pouco da sua magia.
12/02/2009
A ouvir: Leave out all the rest, Linkin Park