A 25ª Hora

Hoje é provavelmente o meu dia preferido do ano, aquele em que por obra de um decreto ou uma lei qualquer o dia estica uma hora como se fosse de borracha, e não vou ser negativa e dizer «mas há-de haver um dia que vai encolher e ter só 23 horas», azar, pensarei nisso na devida altura, e achei que com mais uma hora iria conseguir fazer mais coisas, talvez, ainda não é meia noite, mas acabo por fazer mais do mesmo, tira-a-roupa-da-máquina-estende-enche-outra-vez-esvazia-estende-enche-uma-vez-mais, para que quando acabar de lavar tenha já a da loiça prontinha a ligar, enfim, just an ordinary day, o sol está tão bonito lá fora e o coelho sempre a dar às patinhas, toc-toc-toc-toc-toc, e para cúmulo tenho andado disléxica, só a escrever disparates, como o gajo do Crime Ferpecto que andava tão stressado que não conseguia dizer a palavra correctamente, perfecto, saía sempre ferpecto, adiante, começo a falar de uma coisa e quando tal já estou a falar de outra completamente diferente, é a cabeça sempre a trabalhar, a rapidez dos coelhos é lendária - vai ser bom não foi?, diz a piada - estava eu a falar da 25ª hora, o tempo é o bem mais escasso de todos e ainda assim não chega, será que o tempo nos inventou ou fomos nós que o inventámos, criámos os relógios para o medir mas o tempo criou-se a si mesmo, dividimo-lo em horas de sessenta minutos que por sua vez têm sessenta segundos, parece-me que é puramente uma questão semântica, em vez de hora poderia ter sido roha ou haro ou oarh, por exemplo, ou até xiestemosis, porque não, alguém se lembrou da palavra hora e foi o que ficou, e tem sessenta minutos mas poderia ter cinco patelas ou doze macacos - calma, Gillian, não te quero plagiar -, teria graça contarmos o tempo em macacos ou em patelas em vez de minutos, já nem sei o que estou a escrever, devo ter a cabecita confundida com tanta coisa, a 25ª hora torrou-me os miolos, quisemos inventar uma maneira de controlar o tempo mas não é possível controlá-lo, apenas contá-lo, porque é o tempo que nos controla a nós, um tempo que nos devora as entranhas de maneira a tornar a nossa vida uma expectativa constante, uma angústia crescente para saber quantos minutos nos faltam, quanto tempo mais andaremos por cá, e o medo do desconhecido é tanto que fazemos tudo por tudo para prolongar a agonia da nossa existência.

26/Outubro/2008

A ouvir: Sitting on the Dock of the Bay, Otis Redding

Já ninguém escreve cartas de amor

Já ninguém escreve cartas de amor, queixa-se o Mário Zambujal, mas não se escrevem de amor nem de coisa nenhuma a não ser que não sejam contas para pagar ou publicidade manhosa a tentar vender banha de cobra e água em pó aos incautos, e é curioso ver como antes havia tanta gente a escrever cartas e hoje limitamo-nos a um «tá td bem ctg? cmg tá td, bjs» por sms, o que seria de As Ligações Perigosas enquanto obra literária se, em vez de uma carta, a marquesa tivesse mandado uma sms ao Valmont a dizer algo do género «hj vais pinar a gaja dps paxa cá pa contar cm foi», e que dizer das cartas da Mariana Alcoforado, ou das do Abelardo à Heloísa, do Pessoa à Ofélia, e tantas outras obras da literatura que se teriam perdido, ou o Simão de O Amor de Perdição a mandar e-mails à Teresa, é engraçado ver o grande paradoxo dos nossos dias, quantos mais meios temos para comunicar mais parcos somos nas palavras e menos comunicamos uns com os outros, trocamos piadas e inutilidades por e-mail mas não somos capazes de perguntar à senhora grávida da frutaria quando é que nasce o bebé, ligamo-nos em rede no hi5 e no myspace e no orkurt e noutras coisas do género e contactamos pessoas que nunca vimos nem nunca veremos à nossa frente, mas somos incapazes de coisas tão simples como perguntar à colega que está na secretária ao nosso lado se a mãe dela está melhor da gripe, usamos a Internet para adquirir um aparelhometro que nem sabemos para que serve mas ficamos atrapalhados quando precisamos de comprar um selo dos correios para meter num envelope qualquer, e acho que se os correios ainda não foram à falência e continuam a existir é porque as transacções são cada vez mais impessoais, é mais fácil surfar na net à procura daquilo que queremos ou que achamos que precisamos do que mexermos o rabo para ir in loco satisfazer as nossas necessidades, para quê ir a uma livraria quando posso comprar livros com dois cliques, se agora nem o desconto dos 10% nos dão, e com isto os únicos músculos que se desenvolvem devem ser os dos dedos das mãos, e voltando às cartas agora ainda vão sendo publicadas em livro as missivas trocadas entre nomes respeitáveis da literatura, entre a Sophia e o Jorge de Sena, entre o Houelebecq e o Henri-Lévy, por exemplo, mas daqui a uns anos duvido que haja alguma coisa desse tipo, é pena, hoje os escritores comunicam entre si através de e-mails ou de blogues ou de redes sociais e não é como dantes, com aquelas cartas manuscritas como as que Júlio Dinis escrevia quando estava na Madeira a tentar tratar-se da tuberculose que o matou e a dizer «Hoje está a chover» para no dia seguinte escrever mais uma carta a dizer «Ontem choveu mas hoje já está sol», ou as muitas de muitos escritores que estão na Biblioteca Nacional ou na Torre do Tombo, e dá-me uma certa pena que este hábito se tenha perdido porque há cartas mesmo belas, o Pessoa dizia que todas as cartas de amor são ridículas mas eu não acho, ou se calhar talvez seja o meu conceito de ridículo que está ainda mais desactualizado do que as cartas.

22/Outubro/2008
A ouvir: Love Should, Moby

Geração «papinha-toda-feita»

Compreendo que nos dias de hoje não há tempo para nada — corre, coelhinho, corre — mas a verdade é que somos cada vez mais a geração pret-à-porter, ou melhor, a geração «papinha-toda-feita», e não sei se é por não termos tempo ou se foi o não ter tempo que nos transformou nisso, em criaturas que querem tudo feito e na hora, se não tens dinheiro para pagar azar, pede um crédito, tens é de ter e já, e esta ideia vem a propósito de um comentário feito pela minha mãe, que depois de ter sido arrastada pelo centro comercial a entrar e a sair de lojas desabafou dizendo que «já não se vêem aquelas roupinhas jeitosas e bem feitinhas que havia antigamente, hoje em dia é tudo roupas feitas em série, mal-amanhadas e todas iguais», e de facto hoje quem é que vai ao alfaiate ou à costureira mandar fazer o que quer que seja, quem é que tem tempo para isso, já para se conseguir ir numa fugida a uma catedral de consumo — o chamado comércio tradicional é só para os reformados, que são os únicos com disponibilidade para frequentar locais que abrem às 9 e fecham às 19 —, dizia eu que já conseguir isso é o 13º trabalho do Hércules, ainda para mais com o bebé a escapulir-se de trinta em trinta segundos para se enfiar no carro do Noddy ao fundo do corredor, e não são só as roupas que são pret-à-porter, é tudo, desde a comida encharcada em aromatizantes e conservantes e emulsionantes e outras coisas acabadas em –antes para tentar dar-lhe o sabor que deveria ter e não tem, até aos livros escolares com mais bonecos do que texto, e que trazem, além do manual propriamente dito, o livro de exercícios, o livro de apoio, o livro de correcção dos exercícios e o livro do índice dos vários livros componentes do livro, mais o CD-rom de apoio com mais bonecos e no qual basta clicar para a papa aparecer feita, habituamo-nos desde cedo à Cerelac e depois é o cabo dos trabalhos para a trocar por outra coisa, fala-se dos meninos da mamã da geração mileurista que não saem de casa da mãezinha nem por nada, só a pontapé, porque têm casa, mesa e roupa lavada sem gastarem um chavo, o que ganham é para estourar como se não houvesse amanhã, enfim, as criancinhas começam desde cedo a ter tudo sem se esforçarem, para quê abrir um livro para ver qual é a capital de Portugal se posso ir à Wikipedia, não tarda muito o e-escola que já passou a e-escolinha vai passar a e-pré-escolinha e na volta ainda iremos ver o e-berçário, é preciso habituar os meninos desde já a clicar e a navegar na net, e não esquecer os telemóveis topo de gama que servem para tudo menos para falar, e ainda nos vai acontecer como aos miúdos japoneses que de tanta sms já têm os polegares deformados, é o próximo passo na evolução genética, e para que é que os miúdos da escola se vão dar ao trabalho de fazer pesquisa para trabalhos se podem ir à net sacar algum que já alguém fez e apresentá-lo como seu, para quê mexer o rabo para fazer o que quer que seja se já está tudo feito e pronto, se a papinha já vem feita, a carne já vem temperada das prateleiras do hipermercado, para fazer um bolo é só abrir um pacote e despejar o conteúdo para dentro de uma forma, levar ao forno e já está, a vida está cada vez mais facilitada e mais difícil, já nos chamaram «geração rasca», depois «geração à rasca», a seguir «mileuristas» uns e «dinkis» outros, e atrevo-me a dizer que a geração a seguir à nossa vai ser a «geração-papinha-toda-feita», não quero ser velha do Restelo mas no nosso afã de dar tudo aos nossos filhos acabaremos por criar umas criaturas amorfas que não irão saber coisas corriqueiras e banais como cortar um limão a meio para espremer em cima de um bife, ou fazer uma soma de 10+10 sem usar a calculadora, coser um botão que se desprendeu, ou dobrar uma folha de papel para a meter num envelope ou usar um abre-latas manual, ou folhear um livro sem ser com o rato do computador, and so on…

08/Outubro/2008

A ouvir: Numb, Linkin Park

O que foi feito das batatas?

Talvez tenha sido a única pessoa a reparar nisso, ou pode ser que mais alguém tenha notado e que uma vez mais isto seja apenas a minha mania de achar que sou diferente dos outros, mas a verdade é que as batatas quase desapareceram das nossas mesas — excepto as fritas que de batatas a saber a batata já pouco têm —, hoje em dia o que está a dar é o arroz e as massas de todos os tipos e feitios, ou se calhar não, que os hidratos de carbono engordam diz o doutor Atkins (dizia, antes de ter caído da escada abaixo e ter ido para o jardim das tabuletas), e agora que penso nisso lembro-me que antigamente era raro o dia em que não comia batatas, se não era ao almoço era ao jantar, e havia duas ou três marcas de arroz, quando muito, e a massa era esparguete ou massa meada ou estrelinhas para a canja ou cotovelinhos ou uns canudinhos aos quais a minha irmã apelidava carinhosamente de «canos de esgoto», e por vezes uns lacinhos comprados num dos poucos Pingo Doce que havia numa das frequentes idas ao Porto para tratamentos médicos, e de caminho passava-se na Pérola do Bolhão e comprava-se cevadinha, nunca soube ao certo o que era aquilo mas sabia bem, a mim faziam-me lembrar carcaças minúsculas com aquela forma redondinha e aquele risquinho no meio, e hoje em dia se abrir a despensa em casa encontro cerca de uma dúzia de tipos de massa, esparguete, rigattoni, farfalle, penne, tagliatelle, cappelli di angelo, aletria, massa de arroz, estrelinhas, pevides, placas de lasanha, búzios, cannellonis, mais as massas para o miúdo em forma de aviões e comboios e carrinhos e peixes e estrelas-do-mar e conchas e cavalos-marinhos, e quanto ao arroz há-o carolino, agulha, vaporizado, basmati, tailandês e integral, mas se abrir a outra porta verifico que o cesto das batatas está quase vazio, e pergunto-me porquê, será por elas se estragarem com tanta facilidade, será porque têm de ser descascadas e cortadas, não bastando apenas abrir um frasco e despejar para dentro da panela, e a massa coze em cinco minutos, o arroz demora um pouco mais, e de entre os três as batatas ficam a perder porque são as que levam mais tempo a correr, não, a cozer — com a pressa saiu-me «correr» em vez de cozer, deve ser mesmo uma questão de tempo, o bem mais escasso de todos —, e até o puré de batata passou a ser uns flocos a saber a cartão canelado que se misturam com leite e que por mais noz moscada que leve ainda continua a saber a cartão, é uma pasta que não tem emenda, enfim, mas que diabo se passou com as pessoas para terem deixado de comer batatas, é estranho, os nossos hábitos alimentares mudaram realmente, antigamente era ver as merendas que se levavam, recordo-me das minhas irmãs a levarem a marmita para o trabalho, uma espécie de panela que levava água quente por baixo para manter quente a comida que ia numa outra panela pequenina por cima dessa, e quando se ia para a praia era só ver os tachos e as panelas com o arroz e a feijoada embrulhados em jornais, juntamente com o garrafão do tinto, a melancia, as tupperwares (the one and only, não as imitações reles que se vendem agora em todo o lado por cinquenta cêntimos cada três) com panados e bolinhos de bacalhau e rissóis feitos em casa, mais um saco de pano cheio de pão e broa de milho, mas pronto, já estou outra vez a divagar, queria falar era das batatas, onde é que elas andam, terão sido atingidas por alguma praga como a da Irlanda no século XIX, o que é que as pessoas de hoje têm contra as batatas, há por aí uma acção qualquer em Tomar para incrementar o consumo do feijão, e pergunto-me porquê não fazer uma manifestação pró-batatas, se hoje há todo o tipo de causas absurdas, desde o «Salvem as Baleias» à Associação dos Amigos dos Automóveis Antigos, passando pela Liga dos Amigos das Moscas-da-Fruta, porque não salvar as batatas, pensem só na quantidade de novos postos de trabalho que a McCain e a Matutano e outras empresas de batatas fritas iriam criar para que todos nós andássemos a comer batatas — a bem ou a mal —, e talvez seja realmente essa a verdadeira solução para a crise mundial que avança a passos largos para cima de nós qual praga bíblica de gafanhotos prontos para nos devorar…

30/Setembro/2008

A ouvir: Dancing to Myself, Billy Idol

Os animais são nossos amigos

Não gosto de usar citações, prefiro pensar pela minha cabeça, mas alguém disse em tempos que o grau de civilidade de um país se mede pela forma como trata os seus animais, e a acreditar nisso a Suíça está uma vez mais à frente, pois agora saíram-se com uma legislação sobre o tratamento dado aos animais que os coloca a anos-luz de todos os outros países, e agora os porquinhos suíços (os de quatro patas, subentenda-se) terão de ter ao seu dispor um duche para se refrescarem, coitadinhos, desde que existem como porcos que se rebolam na lama por não terem glândulas sudoríferas — os cães também não e é por isso que arfam — porque é a única maneira que têm de baixar a temperatura corporal, e agora vem um gajo qualquer e diz aos bichos «nem pensem em rebolar na lama, isso é para os porcos! Vocês têm é de tomar um duche porque aqui somos todos civilizados», e os pobres bichos pensam «mas nós somos porcos...», só que os suíços não querem saber, é uma questão de higiene, os porcos têm de tomar duches e ponto final, enfim, mas não se ficam por aqui, parece que querem obrigar os candidatos a donos de cães a tirar um curso, e admito que muitos precisam, muitos mesmo, e até já estou a imaginar as novas licenciaturas — já de acordo com o processo de Bolonha, pois claro! — em Captação e Recolha de Cocós de Cão, ou Acompanhamento Psicológico para Vítimas de Mordeduras de Pittbulls, ou ainda um mestrado em Logística do Transporte de Chihuahuas em Malas Louis Vuitton, mas as medidas de apoio aos animais não se ficam por aqui, os peixinhos dourados passarão a ter direito a serem anestesiados antes de serem atirados pela sanita abaixo, e os hamsters e todos os animais retirados do seu habitat natural terão de ter as condições que tinham, nomeadamente companhia pois sozinhos são infelizes, e ao ler isto aqui o coelhinho começou logo a fazer contas de cabeça para calcular o quanto ganharia se abrisse uma creche ou talvez mesmo — porque não? — uma agência de acompanhantes para hamsters solitários, isto até que era capaz de ter sucesso, o que é que pensam, e até ofereceria entre o leque de serviços o aluguer de gaiolas como se fosse uma espécie de motel, só que entretanto pensei melhor e talvez o lenocínio em espécies animais também seja crime, enfim, às vezes as grandes ideias surgem mas depois não podemos aproveitá-las, falando em hamsters lembrei-me do Mischa, coitadinho, morreu de calor no Verão negro de 2005 em que todas as desgraças aconteceram, ainda me lembro do bicho completamente desesperado de calor — na sua Sibéria de origem o termómetro andava muito longe dos 42 graus daquele dia — e fiquei triste, honestamente, fiquei triste por ver morrer aquela bolinha de pelo cinzento às riscas mas a vida é assim, e voltando às condições a dar aos animais pergunto-me se é obrigatório os hamsters e os lamas e outros bichos terem companhia para não estarem sozinhos, porque não é para os velhos que muitas vezes morrem à porta fechada por não terem sequer quem lhes leve um copo de água, ou que não já não conseguem lavar-se sozinhos, e é paradoxal um país preocupar-se com os porcos que têm de tomar duche mesmo que isso vá contra a sua natureza, e não impõe uma lei que obrigue os cidadãos a cuidarem daqueles que já não conseguem cuidar de si e tomar banho e preparar comida para se alimentarem, «os velhos que se danem», parecem pensar, o que interessa é que os porquinhos tenham o seu duche diário e que os hamsters não se sintam sozinhos, mesmo que a velhinha de 90 anos que mora no prédio em frente esteja em casa completamente abandonada pela família e pela sociedade e a morrer aos poucos, o que realmente interessa são os porcos e os hamsters e os peixinhos dourados, porque seres humanos... a minha mãe costumava dizer que até para ser bicho é preciso ter sorte, e cada vez concordo mais com ela, se calhar mais vale ser bicho na Suíça do que ser humano em certos países.
09/Setembro/2008

A ouvir: As I Sat Sadly By Her Side, Nick Cave & The Bad Seeds

Prenderam o Rato Mickey!

Segundo o Sol, prenderam o rato Mickey, e a Cinderela e a Sininho também, e parece que o Aladino também foi dentro, para grande desgosto das criancinhas de todo o mundo, que tragédia, nem no reino da fantasia estamos a salvo, e não sei se já foram libertados ou não mas é um precedente gravíssimo que se abre, imaginem o que seria se prendessem a Bela Adormecida por ter andado a fumar umas ganzas que eram tão potentes que meteram a moça a dormir durante cem anos, ou os Três Porquinhos por terem assassinado o Lobo Mau com requintes de crueldade como defende o Jack Spratt da Nursery Crimes Division (vide p.f. The Big Over Easy de Jasper Fforde), mesmo que os bichos tenham alegado legítima defesa, e se ainda não prenderam o Lobo por assédio sexual à Capuchinho é porque na volta o advogado dele iria alegar que a culpa era dela por se ter vestido de forma provocante porque como todos sabemos vestir vermelho é uma mensagem subliminar que quer dizer «****-**», e o Hansel e a Gretel por actos de vandalismo pois não tinham nada que destruir a casa da bruxa, e já agora a Caracolinhos de Ouro por ter entrado ilegalmente em casa dos três ursos, e ainda por cima comeu-lhes a papa, a grande meliante, e a Branca de Neve também não é inocente, o que é que pensam, aquela poligamia com os anões é crime, sim senhor, um só anão não lhe chegava?, para quê os sete, e será que o Noddy tem carta de condução para andar a conduzir aquele hediondo carro amarelo, pensava que isso só se podia fazer a partir dos 18 anos, e duvido que o gajo os tenha (bem, ter até que tem, só que está muito bem conservado), e a Alice que andou a comer os cogumelos que a fizeram ter aquelas trips todas, porque é que a chavala ainda não está em Tires, e o Jerry bem que podia interpor uma ordem de restrição contra o Tom, e tudo isto leva-me a crer que os verdadeiros crimes continuam impunes, preferem prender ladrões e assassinos e violadores e traficantes que passam a ter casa, comida e roupa lavada sem terem de mexer uma palha, tinham de os meter era a trabalhar para pagarem o seu próprio sustento, limpar matas para não haver tantos incêndios no Verão, por exemplo, ou a construir estradas em vez de se estar a explorar imigrantes de Leste ou africanos que deveriam era estar a treinar para competir nos Jogos Olímpicos, enfim, é só um desabafo do Coelho que a cada dia que passa está cada vez mais desapontado com o sistema judicial.

21/Agosto/2008

A ouvir: All Good Things, Nelly Furtado

A condição humana

Há coisa de duas semanas assisti a uma cena que me fez pensar na condição humana, não na do Malraux, mas na do comum mortal, da caixa de supermercado com sotaque brasileiro insultada pelo cliente ou dos operadores de telemarketing que todos os dias nos assediam a qualquer hora e em qualquer lugar e em quem descarregamos a nossa fúria apesar de sabermos que estão apenas a fazer aquilo para que são pagos, e estava eu a falar da rapariga do supermercado, a moça disse ao cliente que estava à minha frente o total a pagar, trinta euros e treze cêntimos, e vai o homem, já entradote — para não dizerem que só os jovens é que são malcriados, os velhos também são, e às vezes até mais, apesar de já terem idade para ter juízo —, atira-lhe, literalmente, com vinte e cinco euros, nem mais, e vai a rapariga insiste e diz que são trinta euros e treze cêntimos, ao que ele responde com um esgar de nojo como se ela tivesse a lepra ou estivesse com gangrena no rosto, e depois de atirar uma nota de cinco euros para cima do tapete rolante com cara de frete, agarra num molho de notas de vinte euros, provavelmente em busca dos tais treze cêntimos, e começa a contá-las, eram muitas, não prestei atenção, e a rapariga ia esperando pacientemente que a criatura abjecta lhe pagasse o que faltava, enquanto ele ia contando as notas como que a dizer «estás-armada-em-cabra-sua-brasileira-de-m*****-mas-só-na-minha-mão-tenho-mais-dinheiro-do-que-aquilo-que-ganhas-em-dois-meses-atrás-dessa-caixa-armada-em-cabra», e a mulher dele ia rebuscando moedas dentro da mala com ar envergonhado até que lá encontrou uma de vinte e a deu à rapariga, e eu atrás para pagar só tinha vontade de dar àquele imbecil os sopapos que a mãezinha lhe deveria ter dado e não deu, e lembrei-me da incontornável mania de superioridade da espécie humana em relação aos seus semelhantes, não sou marxista nem nada que se pareça porque mesmo nas espécies animais (e vegetais, porque não?), há sempre o líder da manada, o galo na capoeira, e o chichi a marcar o território, se entras aqui levas uma unhada na tromba, há sempre os que comem mais e os que morrem de fome, a natureza é assim e não somos excepção, mas em determinados aspectos somos todos iguais, todos nascemos nus, quer seja numa maternidade privada caríssima ou na Alfredo da Costa ou até na ambulância do INEM — cala-te lá, coelho, não sejas má-língua — todos nascemos e todos morremos, mesmo que uns vivam como reis e outros morram à fome, mesmo que uns andem nus e outros com roupas cujo preço corresponde ao PIB do Malawi, mesmo que uns andem a pé e descalços e outros de Bentleys de quatrocentos mil euros, e aquele energúmeno do supermercado podia até achar-se melhor do que a rapariga brasileira que o atendeu na caixa, não vou dizer se era ou não porque não a vi numa situação idêntica para ter termo de comparação, neste país basta um molho de notas de vinte euros na mão para se ser doutor mesmo que se seja analfabeto e a rapariga da caixa do supermercado pode até ter doutoramento e ser, ela sim, Doutora, não um licenciado que como não podia deixar de ser se faz mais do que é, o eterno pavão que deveria substituir o galo de Barcelos, enfim, é um bocado como a história do leão e do rato, o homem até poderia ser muito rico mas se não houvesse a rapariga brasileira para o atender teria de ser ele a fazer a amanhar-se, sempre que estamos no degrau acima gozamos e humilhamos aquele que fica no degrau abaixo, como a Angelica dos Rugrats a achar-se superior aos primos que são bebés, quando ela própria só tem três anos, enfim, é quase como aquele anúncio que passava há algum tempo de um fulano que não podia ir naquele lugar do avião porque estava um preto no lugar ao lado, e a assistente de bordo chamava o preto para ir para a primeira classe porque realmente o coitado não merecia ir ao pé de uma besta daquelas, e será que a cena teria sido diferente se a rapariga não fosse brasileira, e pergunto-me qual é a verdadeira condição de ser humano, os animais têm papéis diferentes dentro da própria espécie e nós também, mas como saber qual é o nosso lugar num universo tão vasto, tão vasto, que não somos mais do que uma minúscula partícula de pó, mesmo que nos achemos os maiores?

19/Agosto/2008

A ouvir: Human Touch, Bruce Springsteen

Feuerbach

Não sei porquê hoje lembrei-me de Feuerbach, e se acreditasse no além ou em algo do género diria que se calhar foi o tipo a mandar-me uma mensagem qualquer, porque faz hoje precisamente 204 anos que ele nasceu, enfim, a outra diz que não há coincidências mas acredito que sim, aliás, é das poucas coisas em que acredito, prefiro pensar assim do que submeter-me à ideia de que não passamos de uns actorezinhos patéticos a tentar improvisar os acontecimentos da nossa vida quando na verdade está tudo previamente escrito como no Truman Show e como se todos fôssemos Truman Burbanks e o tipo de lá de cima o maior dos realizadores de cinema, mas pronto, acabou o intervalo, de volta a Feuerbach recordo-me que a par de Kierkegaard e de Hegel foi um dos autores que mais gostei de estudar apesar de ter sido muito superficialmente, e embora não goste de me recorrer ao pensamento dos outros — prefiro o meu, sou coelho, não ovelha para seguir o pastor ou estar no meio do rebanho —, Feuerbach defendia que Deus era a projecção exterior do desejo de perfeição do homem, e tenho de dar a mão, perdão, a pata à palmatória e concordar com ele, não fomos criados por um deus qualquer mas nós é que criámos Deus, quando não sabemos a origem de alguma inventamo-la, um pouco como o mito de os bebés serem trazidos pela cegonha, e ainda me lembro do ar entre confuso e furibundo da minha mãe quando tentou convencer-me de que a mulher tinha sido criada com uma costela do Adão e ao que lhe contestei «então se assim é porque é que são as mulheres a ter os filhos e não os homens?», poderia parecer demasiado para uma criança de sete ou oito anos mas nunca fui muito de acreditar em mitos, aprendi desde muito cedo que as prendas vinham das lojas e que não existia nem menino Jesus nem pai natal porque era eu quem as embrulhava, e nunca conseguiram convencer-me de que era por não havia papel de embrulho na Lapónia, enfim, o Feuerbach também se dedicou ao estudo do altruísmo e bem vistas as coisas o altruísmo, na sua verdadeira essência, é tão mito como a ideia de Deus, já que o fim último do altruísmo é a satisfação pessoal, podem muito bem dizer-me que «contribuo sempre para o Banco Alimentar contra a Fome e para a AMI e para a Sol e para a Abraço e para a Liga Portuguesa contra o Cancro porque são causas em que acredito», mas na realidade fazemo-lo unicamente para nos sentirmos bem connosco, e se compramos dois quilos de arroz para o Banco Alimentar é para apaziguar a nossa consciência pesada por termos gasto um valor equivalente num pacote de batatas fritas que só serve para nos engordar e nada mais, se damos dinheiro a uma organização, seja ela qual for, podemos argumentar que é por exemplo para comprar vacinas contra a malária, e isso é louvável, quem dera que todos contribuíssemos para tentar tornar o mundo um lugar melhor para se viver, estou para aqui a falar mas só não dou quando não posso, e bem haja às pessoas que dedicam a sua vida a ajudar os outros, aos médicos que abdicam dos ordenados milionários para irem para os países do terceiro mundo salvar vidas a troco de nada, a sul-africana que adopta crianças seropositivas para lhes proporcionar um final de vida digno, se acreditasse na existência de santos seriam esses a estar no altar, mas pronto, o que estava a tentar dizer é que, no fundo, o altruísmo é a maior forma de egoísmo, não nos iludamos, e quanto mais nos proclamamos altruístas mais egoístas somos, mais pensamos que o mundo gira à nossa volta, e quantos mais pacotes de arroz comprarmos melhor iremos sentir-nos, mas pronto, o Feuerbach defendia que fomos nós a criar a ideia de Deus como a personificação do ideal de perfeição, acho que tem toda a razão, mas qual é essa ideia de perfeição, a de um ser vingativo que nos castiga com a sua ira quando não lhe fazemos a vontade, ou de um ser indiferente ao sofrimento dos outros, que é capaz de assistir impávido e sereno à agonia de milhões de pessoas, que permite que se mate barbaramente – e até mesmo com requintes de malvadez — em seu nome? Se Deus é assim tão perfeito, como é possível que tenha cometido tantos erros, sendo certo e sabido que errar é humano?
28/Julho/2008

A ouvir: Luz Vaga, Mesa & Rui Reininho

«Tricotar com pelo de cão»

Há dias vi um artigo divertidíssimo sobre livros estranhos e títulos mais estranhos ainda, e um era precisamente para ensinar a tricotar mas com pelo de cão, e outro ainda intitulado faça o seu próprio caixão — e pergunto-me por que carga de água iria ser eu a fazer o meu próprio sobretudo de madeira, para poupar uns trocos, para quê, não os ia levar no bolso para debaixo da terra, só se fosse para as minhocas irem às compras —, e há também um «manual para evitar navios grandes» como se eles andassem por aí a atacar pessoas nas esquinas ou surgissem de debaixo das folhas de alface nas sandes da Companhia das Sandes, e ainda «torne o seu cavalo à prova de bomba», e este até que devia ter a sua graça, se fosse sobre camelos em vez de cavalos talvez desse jeito no Médio Oriente, mas o cavalo não é propriamente o meio de transporte mais normal naquelas paragens, só se forem os dos motores dos Lamborghinis no Dubai, enfim, e pergunto-me como é possível que alarvidades dessas tenham visto a luz do dia, já me fazem confusão os livros de auto-ajuda que rendem milhões aos pseudoprofetas e evangelistas e gurus da treta que contratam ghostwriters para juntar num documento de word meia dúzia de lugares-comuns e chavões do tipo «querer é poder» e que foram retirar ao google, wikipedia e afins, e fiquei francamente horrorizada quando vi no fim de semana uma fulana a dizer na televisão «este livro mudou a minha vida» sobre uma coisa qualquer escrita por uma americana (who else?) armada em zen, para mim mudam é a vida de quem os escreve porque ganham dinheiro com isso, e vendo as coisas deste ponto de vista é claro que o Harry Potter mudou a vida da J. K. Rowling tal como A Sombra do Vento mudou a vida do Zafón, parece-me que estamos tão órfãos de ideias que buscamos desesperadamente qualquer coisa que nos acenem como os burros esfaimados a ver cenouras, mas voltando à história do pelo de cão agora é um vale-tudo para se aproveitar os materiais, e acho isso muito bem, é bom para o planeta e para a bolsa, só que depois os artistas fazem-se cobrar pelas ideias, há uns anos o meu cunhado agarrou num single de vinil e numa máquina de um relógio de cabeceira comprado na loja dos 300 e fez um relógio de parede espectacular com aquilo e anos mais tarde vim a ver a mesma ideia escarrapachada numa revista de decoração com a peça a custar 150 euros, as ideias pagam-se, mas pronto, se ele tivesse sido encorajado poderia ter sido ele a cobrar 150 euros pelo relógio feito com o single de vinil e a máquina que só custou 300 paus, é divertido ver como coisas simples custam enormidades, como uma simples moldura de 1 euro com uns quantos botões colados que fica a custar 15, enfim, lembro-me que em miúda fazia as roupas das bonecas e até arranjava a casa para elas, e até candeeiros de mesa de cabeceira tinham, com dois carrinhos de linhas onde colara caixinhas de papel frisado et voilà, que lindos candeeiros de brincar, mas pronto, já me estou a perder, hoje prezamos tanto a originalidade que por vezes só sai asneira, e realmente gostava de ver como seria uma camisola feita com pelo de cão, deve ser um bocado como uns grãos de café caríssimos que custam quase seiscentos euros o quilo e cujo sabor peculiar advém do facto de já terem sido comidos e depois excretados — leia-se «cagados» — por uns macacos quaisquer numa das ilhas da Indonésia, mas o marketing tem destas coisas, não sei se quem compra esse café sabe que antes de chegar à máquina já passou pelo cu de um macaco, e voltando ainda ao pelo de cão, o subtítulo diz que «é melhor ter uma camisola feita com o pelo de um animal em quem você confia do que de um carneiro que nunca viu», não sei se existem prémios Ig(nóbeis) da literatura como os que há para a ciência, se não há deveriam existir, o Diagram não chega, mas cheira-me é que esta história não é mais do que uma versão politicamente correcta dos 101 Dálmatas com uns pozinhos reaccionários pelo meio à la esquerda-caviar, que tem muita peninha dos bichinhos mas não dispensa os sapatinhos de crocodilo, e que advogam a integração dos ciganos e minorias étnicas e tudo e mais alguma coisa mas desde que seja longe das suas casas, porque «olha para o que eu digo mas não olhes para o que eu faço», e é melhor parar porque já me estou a perder, a cabecita de coelho não pára nunca de debitar ideias em catadupa, mas é realmente melhor parar de dar às patinhas não vá alguém lembrar-se de tricotar camisolas com pelo de coelho…

24/Julho/2008

A ouvir: Born of Frustration, James

Leonard Cohen, the man

Aquilo que já pensava ser impossível aconteceu: ele esteve mesmo cá, e eu estive lá! Pena ter acabado tão depressa...





19/Julho/2008

«Eu não sou má, fizeram-me assim...»

A frase é de Jessica Rabbit, a ruiva com mais mamas e curvas do que cérebro com quem o roger teve a infeliz ideia de se casar, mas aplica-se a muitos casos, e a seguir à «querido-hoje-não-estou-com-dores-de-cabeça» deve ser a desculpa mais esfarrapada e usada para tudo e mais alguma coisa, «a culpa não é minha, é da sociedade, pobre de mim que até sou boa pessoa», essa mania de todos sacudirmos a água do capote e culpar os outros, foi-a-vontade-de-Deus-Alá-Jeová ou qualquer uma dessas criaturas que inventámos para arcarem com a responsabilidade, ou então foi o gajo dos cornos, Lúcifer, Satanás, Mefistófeles, o que quiserem chamar-lhe, a culpa nunca é nossa, se temos negativa a matemática não é por não termos estudado, não senhor, é da Ministra da Educação, a culpa é dela, ou em última análise é do Pitágoras que não tinha nada de ter inventado o raio do teorema, que chatice, porque é que não se dedicou antes à floricultura, e se estamos de mau humor e damos um tiro no meio dos olhos do condutor que se meteu à nossa frente na Segunda Circular ou se abrimos a cabeça a um gajo com um taco de beisebol (malditos dicionários novos, porque é que não posso escrever basebol como ficava bem, porquê aportuguesarem as palavras, a culpa é da LeYa!), estava eu a dizer que se abrimos a cabeça de um gajo com um taco na rua dos Fanqueiros só por causa de um bate-chapas a culpa é dos jogos de vídeo que nos tornam violentos ou do filho da mãe do médico que não quis receitar o Prozac, se se bebe até cair para o lado é por causa da publicidade — se fôssemos por aí todas as noites ficaria em coma alcoólico por causa das horas de anúncios a uísque (whisky!!!!!!! raio do dicionário novo) —, a menina rouba roupa de marca nas lojas, coitadinha, é a sociedade que a pressiona, as amigas têm e ela também tem de ter para não se sentir excluída, coitadinha, endividamo-nos para comprar o que não precisamos até nos tornarmos escravos dos bancos porque o telemarketing é tão apelativo, vá lá, tenha até trinta mil euros já para o que quiser, até para comprar uma banheira em ouro puro para a barbie da sua filha ou para o action man do menino, e os patos caem, queixamo-nos das leis deste país-que-está-cada-vez-pior-e-a-culpa-é-do-governo mas a principal lei a mudar deveria ser a lei do menor esforço, queremos as coisas mas esperamos que caiam do céu e quando não caem culpamos todos e mais alguns pela nossa falta de sorte, é mais fácil ficar sentados no sofá a lamentarmo-nos do que trabalharmos para conseguir alguma coisa, e por vezes dá-me uma enorme vontade de fazer aos pedintes o que o Patrick Bateman lhes fazia, que exagero, não deveria estar a dizer isto, a culpa é da crise, «eu não sou má, fizeram-me assim…», o mundo é uma selva onde todos querem ser leões e comer o que os outros caçam, a coisa mais fácil que há é estender a mão e esperar que lá caia alguma coisa, quem não chora não mama como se costuma dizer, aprendemos isso desde o berço, buáááááá quero leite quero colo quero bolachas quero brinquedos quero calças da Salsa quero um Iphone quero uma mota quero um carro quero um plasma quero um apartamento quero quero quero quero, e nunca estamos satisfeitos, queremos sempre mais, se assim não fosse não teríamos evoluído, teríamos ficado eternamente como os nossos primos macacos, é difícil sair dos guetos e dos bairros de lata e das barracas mas não é impossível, é tudo uma questão de esforço, é possível chegar-se ao topo mesmo tendo passado anos a estudar à luz das velas, há histórias extraordinárias que pessoas que ultrapassaram dificuldades inimagináveis mas que conseguiram, só que é mais fácil dizer «eu não sou má, fizeram-me assim…»

15/Julho/2008

A ouvir: Somewhere I Belong, Linkin Park

Estrela-do-mar

Ao ler Uma Casa na Escuridão durante as férias e a pensar depois nas mutilações narradas na obra dei comigo a pensar se o ser humano não seria como uma espécie de estrela-do-mar, e podemos cortar uma das pernas à estrela que ela volta a crescer, e até três ou quatro de uma vez porque elas crescem, é difícil mas acontece, no livro cortam as pernas e os braços ao narrador e a uma das personagens arrancam o coração e a outra ainda furam os ouvidos com uma agulha e um violinista vê a mão brutalmente decepada na sua frente com um golpe seco, mas se pensarmos bem não é necessário haver nenhuma invasão estrangeira como no livro, a própria vida encarrega-se de nos mutilar, não estou a falar no caso do pára-quedista americano que ficou sem as duas pernas num acidente e que com próteses e tratamentos e afins passados alguns meses estava novamente a saltar do avião, estou a falar por exemplo do rapaz que sonha ser médico mas que não tem sequer capacidade intelectual para cumprir a escolaridade mínima e mesmo que tivesse não ia ter depois as condições económicas para pagar uma faculdade e que aprendeu o que pôde às suas custas com os poucos livros que conseguia comprar com o pouco dinheiro que lhe sobrava do ordenado, e para esse rapaz é como se lhe tivessem amputado as pernas e os braços porque não consegue chegar aonde sonha, ou aquele outro jovem a quem a mulher adúltera arrancou o coração e que não encontrou melhor forma de lidar com a dor a não ser beber uma garrafa de lixívia e atirar-se do quarto andar no dia dos namorados, ou ainda muitos outros casos incontáveis, a criança da talidomida que nasceu sem uma perna e sem um braço e hoje é uma mulher fantástica e independente com uma carreira de sucesso, e se há casos irremediáveis, porque até as estrelas-do-mar morrem, ninguém é imortal, por muito que doa a muita gente, há certas estrelas-do-mar que por mais dificuldades que lhes surjam conseguem sempre que as pontas cresçam, e tenho o privilégio de conhecer uma estrela-do-mar que ainda há pouco tempo estava presa a uma cama de hospital em coma, uma figura frágil de pele e osso, e por mais anos que viva dificilmente irei esquecer aquela imagem de um emaranhado de tubos emoldurado por um tufo de cabelo amarelo, tantos tubos que nem se via a pessoa que estava por detrás, tão magra que parecia mais que o lençol estava amarrotado, nem dava para se perceber os contornos da estrela-do-mar, e essa estrela-do-mar que toda a vida foi como um junco sempre a ser vergada pelo vento, aparentemente frágil mas que não quebra nunca porque os juncos são assim, vergam mas não partem, a estrela-do-mar vergou, secou, mirrou, cortaram-lhe várias vezes as pontas, mas a estrela-do-mar conseguiu sempre sobrepor-se a tudo e a todos, numa capacidade extraordinária de resistência de alguém que esteve no inferno e voltou para contar a história, e que por mais dificuldades que se lhe deparem nunca deixa de ser uma estrela-do-mar cor-de-rosa.
07/Julho/2008

A ouvir: Where the Wild Roses Grow, Nick Cave e Kylie Minogue

A loja do Meco moleiro

Quando ainda não havia hipermercados com carrinhos que nos puxam sempre para as prateleiras quer queiramos quer não, as compras faziam-se na mercearia da rua, a loja do Meco moleiro a quem faltava um dedo, dizia-se que por obra de um porco, o homem fora dar de comer ao bicho e o porco comeu-lhe o dedo, às vezes acontece, a fome faz destas coisas, e naquela altura não havia tanto lixo nas ruas porque as coisas eram vendidas avulso, o açúcar amarelo era tirado com uma medida de alumínio para dentro de um saco de plástico e depois pesado numa balança com pratos de cobre, a marmelada embrulhava-se em papel ou então comprava-se logo um caixote inteiro de uma vez, que depois até servia para meter a areia dos gatos, e a lista não variava muito, era escrita no papel velho que tinha vindo com a marmelada ou com a broa de milho da véspera, uma caixa de seis garrafas de óleo, duas garrafas de azeite, dois quilos de açúcar amarelo, uma grade de garrafas de litro de frisumo de laranja, um garrafão de cinco litros de vinho branco, quatro pacotes de café de saco, um quilo de sal, um frasco de mokambo, alguns pacotes de arroz carolino e outros quantos de esparguete, de massa meada e de estrelinhas para a canja, dois pacotes de tulicreme e outros tantos de planta, leite gordo da mimosa, alguns pacotes de bolacha maria e mais um ou outro de catraias e de joaninhas e belinhas, por vezes latas de salsichas e de atum, um frasco de ajax e outro de superpop limão, uma embalagem de esfregões bravo e outra de cif, e depois de apontar tudo o que foi comprado num livrinho para se pagar no final do mês a filha do Meco moleiro metia aquilo tudo num carrinho de mão e levava a casa, e o resto das coisas iam-se comprando à medida das necessidades que o quintalzinho não conseguia suprir, a carne era comprada todas as semanas porque o congelador não dava para guardar grande coisa, o peixe vinha de uma carrinha que todos os dias subia a rua a apitar apitar apitar até parar num determinado sítio, ou então vinha do mercado ao sábado de manhã, o bacalhau era comprado num grossista ou então em Espanha quando já não havia mais à venda — há pessoas que não sabem que existia uma coisa chamada Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau, acho que o Museu do Oriente funciona nas antigas instalações dessa comissão —, e de um lado ou de outro surgiam sempre fruta e ovos e coelhos e frangos caseiros gordos que tinham de cozer durante uma eternidade para ficarem tenros, por vezes até carne de porco e de vaca, os limões eram colhidos da árvore imediatamente antes do uso, a salsa vinha do canteiro, a polpa de tomate era feita em casa e guardada em garrafas de vidro que ficavam na despensa, onde já estavam as tigelas de barro vidrado com marmelada e os frascos de geleia e de doce de tomate e as garrafas de vinho, os sabonetes e os champôs e a pasta de dentes e as escovas e os pensos higiénicos para as minhas irmãs e a laca e o papel higiénico eram comprados em lojinhas dispersas à medida que surgiam as necessidades, e naquela altura comprava-se apenas aquilo de que se precisava, sabíamos as quantidades de que necessitávamos e do quê, se levávamos a lista à loja do Meco moleiro saíamos de lá só com o que estava na lista, mas hoje vamos às compras comprar uma embalagem de fraldas para o bebé e temos de trazer as toalhitas e três tipos diferentes de leite, e iogurtes de várias tipos e uma miríade de bolachas diferentes e as natas para bater e as natas para cozinhar, há tantas variedades de cereais de pequeno almoço que até se perde a fome enquanto tentamos decidir quais é que vamos comer, e tudo o que se compra traz tanto plástico e tanto papel e tantas caixinhas que o caixote do lixo fica logo cheio, para quê guardar as garrafas de vidro se não fazemos polpa de tomate nem vinho, em criança as latas de bolachas eram usadas como caixas de costura mas hoje vão directas para o lixo, quantas toneladas de plástico são gastas todos os dias na carne embalada, antes dizia-se no talho «quero 4 bifes de vitela» mas hoje passamos na secção de carnes do hipermercado e não temos tempo para estar à espera da nossa vez e pegamos em duas cuvetes com dois bifes cada, e as compras continuam a vir em carrinhos, mas não carrinhos de mão como o que a filha do Meco moleiro costumava puxar, e sim dos carrinhos que nos puxam para as prateleiras para comprarmos mais e mais e mais — e eles puxam-nos, sim, não há dúvida disso, é um defeito qualquer que têm nas rodas que os faz ir para o lado das prateleiras, experimentem lá andar com um carrinho de compras a direito e vão ver que é verdade, não se consegue andar com ele em linha recta —, e a loja do Meco moleiro há muito que já não existe, e nem ele, que entretanto morreu, já era velho quando eu era pequena, e a filha dele já não puxa carrinhos de mão com as compras dos clientes, e também já não se aponta no livrinho o que se comprou para pagar no fim do mês, hoje paga-se com o VISA que também é no fim do mês, o VISA é o fiado dos nossos dias, e pergunto-me para quê tanta evolução, se no fundo as coisas continuam na mesma, será que realmente precisamos de continentes e jumbos e feira nova quando a loja do Meco moleiro é suficiente, e à medida que o tempo passa cada vez me convenço mais de que as nossas necessidades não mudam, o que muda é o conceito que temos de necessidade.

20/Junho/2008

A ouvir: Teardrop, Massive Attack

A malinha de palha com um leão estampado


Quando andava na primária costumava levar o lanche numa malinha de palha com um leão que não era nem de Oz nem de Narnia nem de qualquer outro mundo fantástico, um vulgar leão com olhos azuis estampado num dos lados da malinha, que tinha duas asas e forro de tecido cor-de-rosa, e geralmente o lanche não variava muito, era sempre pão do que o padeiro vinha trazer a casa e deixava dentro de um saco de pano que ficava pendurado do lado de fora da porta, e umas vezes era com tulicreme, outras com geleia de marmelo ou marmelada caseira que a minha mãe fazia na altura dos marmelos, ajudava-a sempre a fazê-la e depois a metê-la em tigelas de barro vidrado que depois cobríamos com papel vegetal para não ganhar bolor, adiante, por vezes também levava fruta mas como era muito esquisitinha geralmente a fruta vinha para trás intocada, e na escola davam-nos sempre pacotinhos de leite, um de manhã e um à tarde mas que eu recusava porque não gostava de leite simples, acho que é mal de família porque de uma ninhada de tios do lado do meu pai nenhum gostava de leite, e na altura não havia oreos nem bollycaos nem croissants com chocolate nem pacotinhos de batatas fritas nem de cheetos ou pringles mas eu e as outras crianças lanchávamos na mesma, mas hoje o lanche não vai em malinhas de palha com um leão, vai em lancheiras térmicas com o Noddy ou a Barbie ou o Bob o Construtor ou a Dora Exploradora ou o Ruca, as Winx, o Winnie the Pooh ou os Carros ou os bonecos da Disney consoante as idades das criancinhas, e ai dos pais que não comprarem as ditas lancheiras térmicas, arriscam-se a que a ASAE venha às escolas confiscar os lanches por falta de condições de armazenamento e transporte, se vissem a minha malinha de palha com o leão gritariam de horror perante a possibilidade de uma miríade de fungos e vermes e outras criaturas se alojarem no meio das palhinhas, e mesmo o conteúdo é diferente, é preciso mandar os bollycaos e os donuts e as batatas fritas para que as criancinhas possam coleccionar os cromos e os bonecos e o que quer que seja que vem nos pacotes, e depois engordam engordam engordam mas isso não interessa, o que não pode acontecer é as crianças levarem pão com tulicreme ou com marmelada caseira numa malinha de palha com um leão por causa do risco de gastroenterites e das salmonelas, e hoje quem é que tem tempo para fazer marmelada caseira, sempre a correr de um lado para o outro, (corre coelhinho corre), quem é que tem tempo para agarrar nos marmelos e descascá-los e cortá-los aos bocados para dentro de uma panela com água e açúcar e esperar durante horas que cozam para depois moer tudo e meter em tigelas de barro vidrado cobertas com papel vegetal, é mais fácil ir à loja gourmet e comprar a dita marmelada que muitas vezes nem caseira deve ser, e o tulicreme é uma seca porque não traz bonecos, é melhor o kinder nutella porque sempre dá para os pontos para se conseguir prémios, mas apesar de tudo sei que quando chegar à altura de o bebé ter de levar lanche para a escola primária também irá ser numa lancheira térmica com o boneco que estiver na berra na altura, porque por muita vontade que tenha, é assim que as coisas são e já não há malinhas de palha com leões estampados para se levar para a escola, nem padeiros que deixem o pão num saco de pano pendurado à porta de casa…

16/Junho/2008

A ouvir: Everyday Is Exactly The Same, Nine Inch Nails

Teresinha

A Teresinha era um daqueles bonecos chorões que estavam na moda quando era criança e que veio ao colo da filha da vizinha desde Vigo porque os guardas da fronteira podiam implicar, e então a miúda fingiu que a boneca era dela, na altura ainda havia limites aos que se podia trazer ou não de Espanha, só se podia trazer x quilos de bacalhau por pessoa, como hoje em Andorra há limites de quantidades por causa dos impostos, mas enfim, adiante, e chamámos-lhe Teresinha porque a boneca trazia um babete onde estava pintado tiernecita, mas na altura era demasiado pequena para saber ler e quem leu aportuguesou o tiernecita para Teresinha, e a Teresinha trazia ainda uma chucha cor-de-rosa e chorava e abanava a cabeça se lha tiravam, e fez isso até que as pilhas derreteram lá dentro e deram cabo do mecanismo, e além da chucha vinha com um vestido de malha com a saia às pregas, também cor-de-rosa, e que tinha uma racha até à cintura — mais própria de uma call-girl do que do suposto bebé que deveria representar —, com uma fita de cetim branco a formar um laço que lhe caía pela perna abaixo, mais um penacho de cabelo sintético enfeitado com um lacinho igualmente cor-de-rosa, e a primeira coisa que fizemos quando nos apanhámos com a Teresinha nas mãos foi rebuscar no meio das minhas antigas roupas de bebé algo mais apropriado do que aquele vestido com a racha que expunha as pernas da criança ao frio, era Dezembro, coitadinha podia morrer gelada, e depois de a ataviar convenientemente com um vestidinho mais quente a minha mãe comprou-lhe umas botinhas de lã felpuda cor-de-rosa com cabeças de pintainho brancas a enfeitá-las para que a pobre da Teresinha não tivesse frio nos pés, e quase todas as semanas tínhamos o cuidado de lhe mudar a roupa consoante o tempo, se estava frio vestíamos-lhe um casaco que já tinha sido meu, se estava calor era um vestidinho de manga curta lilás comprado no mercado, e apesar de o tempo correr — tique-taque, tique-taque, tique-taque — a Teresinha continuou a fazer parte das nossas vidas, não só da minha mas da de todos lá em casa, e ainda hoje ao fim de vinte e tal anos ainda é a Teresinha, já sem pestanas nem penacho de cabelo e com um olho semi-fechado, mas ainda continua sentada em cima da cadeira do meu quarto como se o tempo tivesse congelado ali, e recordo-me de uma vez a minha prima ter ido lá a casa e de me ter pedido para levar a boneca para casa dela, e a ideia deixou-me em pânico, coitada da Teresinha, sabe-se lá o que lhe pode acontecer, mas lá me convenceram com o já-és-crescida-deixa-lá-a-miúda-levar-a-boneca-ela-não-a-estraga, só que nessa noite não dormi, passei a noite a contar os minutos que faltavam até chegar a hora de poder ir a casa da minha tia recuperar a Teresinha, e quando me vi com ela senti o alívio que uma mãe sente ao ver um filho perdido, e hoje ao olhar para o desapego dos miúdos em relação aos brinquedos sinto uma certa nostalgia, em criança era difícil para mim e para os outros miúdos conseguir brinquedos porque não havia muitos à venda, pelo menos no sítio onde cresci, e para conseguir a Teresinha tivemos de pedir à vizinha para a comprar na excursão a Vigo e dizer à miúda dela para trazer a boneca ao colo, tal era o medo de não a deixarem passar a fronteira, e hoje há por aí tantos brinquedos e tantas bonecas e casinhas e carrinhos e peluches e legos e tudo e mais alguma coisa que as crianças de hoje se dão ao luxo de ignorar os brinquedos que têm, tinha medo que a Teresinha se constipasse e por isso calçava-lhe as botinhas felpudas nos pés, e vejo hoje as minhas sobrinhas a mergulharem as barbies na banheira e a cortar-lhes os cabelos e a arrancar-lhe as pernas, e convenço-me de que realmente só damos valor às coisas quando são difíceis de conseguir.

04/Junho/2008

A ouvir: Into My Arms, Nick Cave & The Bad Seeds

Uma rapariga chamada Alice

Há muitos anos conhecia uma rapariga chamada Alice, e dos meus três anitos — a minha memória não consegue recuar para antes disso — ela parecia-me a autoconfiança em pessoa, bonita, vaidosa, com os cabelos lisos até ao fundo das costas e com os olhos sempre muito maquilhados, a roupa sempre impecável, os sapatos de salto alto para ganhar os centímetros que lhe faltavam, nunca se esquecia do perfume, alegre e namoriscadeira, sempre a cantar as músicas da moda, sempre com uma fila de candidatos a namorados à espreita, do género olha que coisa mais linda / é ela que passa, só que não estávamos em Ipanema, o género de rapariga que deixava todos os que a viam completamente embasbacados, pele de porcelana e uma enorme cortina de cabelo negro liso que lhe descia até ao fundo das costas, que a Alice mantinha liso à custa de papel vegetal e ferro de engomar porque não havia dinheiro para cabeleireiros, ela estendia a cortina de cabelo na tábua de passar a ferro e a irmã cobria-o com papel vegetal e passava-lhe com o ferro em cima, ainda me lembro de as ver ali, e depois trocavam, era a outra quem deitava o cabelo na tábua e a Alice passava-o a ferro, o cabelo era o seu maior orgulho até ao dia em que ficou preso no tear da fábrica onde ela trabalhava e tiveram de lho cortar à pressa com uma tesoura para a Alice não ficar sem cabeça, só que era a sério, não era nenhuma ameaça da Rainha de Copas, e parece-me que desde esse dia a Alice perdeu a força tal como aconteceu com o Sansão, quando cortou a cortina de cabelo negro que lhe descia até ao fundo das costas parece que perdeu a alegria de viver, e durante muito tempo ainda se maquilhava e vestia-se impecavelmente e continuava bonita mas sem o fulgor de antes, e aos poucos e poucos deixou de ser a rapariga encantadora que irradiava felicidade e passou a ser uma sombra do que era, a saúde começou a falhar e os problemas a miná-la, a idade começou a marcar-lhe o rosto e tudo o resto, e hoje a Alice é um Sansão sem forças, que desistiu de lutar como se a vida já não importasse, já não tem sonhos, já não tem esperanças, já não se pinta, já não se veste impecavelmente nem usa saltos altos porque os joanetes e a coluna não lhe permitem, e já não tem a cortina de cabelo negro a cair-lhe liso até ao fundo das costas, porque um dia há muitos anos atrás a força que tinha ficou presa talvez para sempre nas teias de um tear.

23/Maio/2008

A ouvir: A Wither Shade of Pale, Procul Harum

O meu fogãozinho de brincar

Em criança tinha um fogãozinho de brincar onde aprendi a ver as horas sem a ajuda de ninguém, e é estranho aprender as horas num fogão de brincar de plástico que tinha um mostrador de relógio pintado na tampa e que marcava eternamente meio dia e um quarto, deveria ter aprendido as horas num relógio a sério mas não, não é que não tivesse relógio, faltava era quem me ensinasse as horas, éramos muitos numa casa pequena e andava sempre toda a gente a correr de um lado para o outro não se lembrando da criança que por ali andava a vaguear, uma intrusa num mundo só de crescidos com assuntos de crescidos para se preocupar, de maneira que a criança teve sempre de se amanhar sozinha, brincava sozinha com o fogãozinho de brincar em plástico que trazia duas panelinhas do tamanho de rolhas de garrafas de espumante, e com o trem de cozinha com panelas brancas e tampas vermelhas com asas pretas que trazia uma concha e uma escumadeira e uma colher grande iguais às da minha mãe, e depois de fingir que cozinhava no trem de cozinha passava a sopa com a varinha mágica branca com a lâmina de plástico azul e metia a comida no frigorífico do tamanho de uma caixa de sapatos que até tinha uma lâmpada minúscula que acendia de cada vez que lhe abria a porta e a loiça a lavar numa máquina azul com uma porta transparente que funcionava bem até ter metido água lá para dentro, e depois da loiça lavada metia-a num armário que o meu pai tinha feito, e a seguir ia tratar das roupas, pois claro, despia as bonecas e passava-lhes a roupa a ferro — sim, porque de onde venho «engomar» significa colocar goma na roupa — para depois arrumar a roupa num roupeiro de madeira com duas portas de correr e uma gaveta que a minha prima me tinha dado, e só depois disso é que a boneca se sentava na cadeira de madeira branca a descansar, mas não por muito tempo, tinha de se levantar logo a seguir porque era preciso ir ao cabeleireiro por rolos de plástico cor-de-rosa no cabelo e secá-lo com um secador a pilhas também ele cor-de-rosa, nessa altura a boneca ainda não se preocupava com pelos nas pernas e podia usar minissaia à vontade e saltos altos (não os do Almodóvar, nessa altura ainda não sabia sequer que ele existia), mas a certa altura fartava-me de todos aqueles afazeres e abandonava a boneca e as panelas e o fogãozinho e o roupeiro com portas de correr e a cadeira de madeira branca com a boneca lá sentada e ia fazer outra coisa como cortar os bigodes ao gato com a tesoura, ou ler o livro da Alice no País das Maravilhas que tinha trazido da biblioteca municipal, mas agora não posso fazer isso, agora o fogãozinho não é de brincar, é a sério, e não basta olhar para uma panelinha de plástico vermelho do tamanho de uma rolha de garrafa de espumante e imaginar que há arroz de polvo lá dentro, é preciso picar a cebola e fazer o refogado e enfiar o polvo aos bocados para dentro da panela e depois o tomate e o sal e a pimenta e água e no fim o arroz, e é preciso trabalhar para ter dinheiro para comprar o arroz e o polvo e o resto das coisas, e depois do arroz feito e comido enfiar a loiça na máquina de lavar que é agora branca e funciona a electricidade em vez de pilhas (disseram-me que havia máquinas de lavar a gás, será verdade?), e no meio do vaivém e corropio em que a minha existência se transformou sinto uma certa inveja daquela criança que tinha um fogãozinho de brincar e que cortava os bigodes ao gato e que punha rolos cor-de-rosa no cabelo das bonecas e que dava biberões de leite aos pobres coelhinhos órfãos e que fazia todas aquelas coisas que o peter pan que existe latente dentro de nós anseia por fazer.

21/Maio/2008



A ouvir: Forever Young, Alphaville

Someone to watch over me

Um dos maiores prazeres deste mundo é ouvir a música de Gershwin, sobretudo se for na voz de Sarah Vaughn, ou até mesmo tocado por um saxofonista desconhecido numa estação de comboios que toca na rua para ganhar uns trocos, I’m a little lamb who’s lost in the woods / I know I could always be good to the one who’ll watch over me… e ponho-me a pensar que é disso que todos andamos à procura, somos todos cordeiros perdidos à procura do pastor, todos andamos à procura de alguém ou de alguma coisa, there’s a somebody I’m longing to see / I hope that he turns out to be / someone to watch over me, e por isso agarramo-nos a qualquer coisa, o que quer que seja, porque a vida é uma procura incessante e nunca estamos satisfeitos, queremos sempre mais e mais e mais, e acreditasse em Deus ou nos ensinamentos que me inculcaram nas aulas de catequese diria que não só nascemos em pecado mortal, o pecado original, como a própria vida é um pecado mortal, um dos sete, a vida é ganância porque queremos sempre mais, mais coisas, mais dinheiro, mais felicidade, mais amor, mais saúde, mais paz, mais vida, viver mais um bocadinho, nunca nos fartamos, mais, mais, mais, viver a vida o mais intensamente possível, mas temos medo da morte, e é verdade que uma não existe sem a outra, não poderíamos conceber a ideia de vida sem termos concebido o seu oposto, tal como não pode existir Deus sem o Diabo, o belo sem o feio, a melodia (Gershwin outra vez, there’s a saying old / that says that love is blind / Still we’re often told / seek and you shall find) sem o barulho insuportável, e fazemos como diz a canção — e o ditado também — procura e encontrarás, seek and you’ll shall find, e corremos de um lado para o outro à procura de algo que não temos a certeza se alguma vez encontraremos, sempre com o tique-taque-tique-taque-tique-taque contra nós, nunca sabemos quando é que vai fazer tique-taque pela última vez, a única certeza que todos nós temos é que um dia iremos parar, mas tentamos adiar a paragem porque antes disso temos de encontrar o pastor, ao mesmo tempo que procuramos evitar o lobo, como se de um jogo de vídeo se tratasse, e há lobos em todo o lado, não é só na história do Capuchinho, há lobos esfaimados à espreita, e pensando bem, a pressa dos dias de hoje não é mais do que a nossa tentativa vã de escapar à inevitabilidade da morte, desse lobo armado de foice que anda atrás de todos os coelhos brancos e não só, de todos os animais, até dos cordeiros que confiam no pastor, porque diabos escolheram os cordeiros e não outro bicho qualquer, será que é por serem facilmente manobráveis? — basta agitar o cajado, anda senão levas, vai para onde eu te mando, ou então um cão mal-humorado a ladrar — e concluo que o principal motor da vida é o medo, a maior angústia que pode existir é saber que a vida tem fim e que não podemos fazer nada para evitá-la, e podemos fugir mas não escondermo-nos, porque mais cedo ou mais tarde ela encontra-nos, mesmo que o cordeiro não encontre o pastor o lobo encontra o cordeiro e devora-o, porque é para isso que os cordeiros existem, e por mais coisas que façamos e por mais que tentemos encontrar um fim para a nossa existência, fim no sentido de objectivo e no de termo, no fundo resume-se sempre tudo ao mesmo, o fim último da vida é a morte.
30/Abril/2008
A ouvir: Someone to Watch Over Me, Sarah Vaughn

Nick Cave no Coliseu em Lisboa



I was there!

Da morte sem sentido ou do sentido da morte

Faz hoje precisamente vinte anos que acordei com um autêntico cenário de guerra no quintal, uma carnificina perpetrada por um desconhecido cão raivoso, que atacou as coelheiras e estraçalhou impiedosamente mais de vinte coelhos, bebés incluídos, e apesar do tempo que passou ainda me lembro da minha mãe a abanar a cabeça de incredulidade e a balbuciar com lágrimas nos olhos «não há direito, não há direito», e de todos os coelhos só sobraram dois bebés que ficaram escondidos no meio da palha, o coelho branco (ao qual conseguira salvar da morte certa quando partiu uma pata) estava estendido com os olhos esbugalhados em cima das couves, e um sem-número de outros atirados meio comidos para o meio da rama das batateiras, uns quantos só até meio do corpo como se tivessem passado em cima de uma mina terrestre, mas não foi uma mina, foi algum cão o autor de semelhante massacre, um cão que apenas matou por matar, se tivesse sido para comer, mas não, quis apenas matar pelo prazer de de matar, e lembrei-me agora disso, por vezes fecho os olhos e lembro-me de todo aquele sangue e pedaços de coelho espalhados um pouco por todo o quintal, deve ser daí que vem a minha fixação por coelhos, depois foi preciso alimentar as duas bolinhas de pelo que se salvaram das mandíbulas do selvagem, pegar nelas com muito cuidado e dar-lhes leite por um biberão que não era biberão, era uma garrafa de Spur Cola com uma tetina de borracha comprada na farmácia, e depois quando já comiam dar-lhes raspas de cenoura e folhas de alface e cascas de batata, alimentá-los à mão enquanto os afagava, mas isso já é outra história, e não sei porquê nunca consegui esquecer-me desse acontecimento, recordo-me de na altura ter pensado na razão de tudo aquilo, no sentido daquele autêntico massacre, e vinte anos depois ainda me pergunto porque é que as pessoas têm de morrer, ao mesmo tempo que me surpreendo a responder-me «porque é assim que tem de ser, tudo o que nasce tem de morrer», e por mais que me interrogue e me questione sobre o sentido da morte ou da morte sem sentido chego sempre a essa conclusão, seria bom que todos nós pudéssemos morrer sem dor, sem necessitarmos de tubos enfiados pelo nariz adentro nem tratamentos de quimioterapia a queimar-nos as veias por dentro nem cirurgias inúteis nem injecções de morfina para tentar inutilmente lutar contra o veneno que nos rói por dentro, seria bom se não tivéssemos de olhar para os olhos das pessoas e ver o medo neles, o pânico de morrerem, ver a certeza da morte e não poder fazer nada para a evitar, sem termos de lhes agarrar nas mãos com força e dizer «está tudo bem, vais ficar bom, não tenhas medo» mesmo sabendo que é mentira, sei que faz parte da ordem natural das coisas os filhos enterrarem os pais e os que vivem enterrarem os que morrem, até aqui consigo compreender, há quem ache que a morte não tem sentido mas tem, mesmo que não o entendamos à partida, tudo acontece por uma razão, e até entendo que tenhamos de morrer, só não entendo é o porquê de termos de sofrer para isso.
21/Abril/2008

A ouvir: Death Is Not The End, Nick Cave & The Bad Seeds

A cauda que abana o cão

Tirando os cegos — invisuais, porque temos de ser politicamente correctos —, não deve haver pessoa nenhuma no mundo que nunca tenha visto um cãozinho a abanar a cauda, e sempre que isso acontece é por uma razão (geralmente o bicho está contente ou expectante), e seja qual for essa razão, ela existe, e se não se vêem os coelhos a abanar a cauda é porque ela é demasiado pequena, mas enfim, lá estou a divagar, aqui o que interessa é a cauda e o cão, e lembro-me de uma vez ter lido uma coisa no manual de Economia do Paul Samuelson que me fez rir durante algum tempo, até ter constatado que realmente o senhor tinha razão, e era uma frase muito simples, não me recordo já em que contexto era, penso que seria por causa da lei da oferta e da procura, mas dizia que «não é o cão que agita a cauda, é a cauda que agita o cão», sei que o verbo agitar não é o correcto só que era o que lá estava escrito, quem traduziu o livro não devia saber o que quer dizer «wag», e também me lembro de um filme espectacular do Barry Levinson com o Robert de Niro e o Dustin Hoffman chamado «Wag the Dog» que teve o infeliz título português de «Manobras na Casa Branca» (hoje acordei com vontade de cascar nas traduções, perdoem-me, são os ossos, não do cão, mas do ofício) e cujo princípio era basicamente o mesmo, não é a causa que provoca o efeito mas sim o efeito que produz a causa, parece algo que contradiz as leis da física mas se calhar o defeito é meu, e o filme narrava uma situação em que a realidade acabou por imitar a ficção, e uma vez mais as coisas acontecem ao contrário, era um caso em que, para se distrair a atenção da opinião pública americana de um crime ocorrido na Casa Branca, um estratega (De Niro) encenava uma suposta guerra com a Albânia, um país completamente desconhecido dos americanos, esse povo que de geografia mundial apenas sabe onde ficam o Canadá e o México só porque fazem fronteira com eles, porque de resto não sabem onde fica mais nada, e esse estratega decidia contratar um produtor falido de Hollywood (Hoffman) para encenar essa guerra como se de um filme se tratasse e até conseguiam uma estrela (Woody Harrelson) para fazer de soldado herói da suposta guerra, e qualquer semelhança com a realidade que posteriormente veio a acontecer deve ter sido pura coincidência, ou talvez não, e ao lembrar-me dessas duas coisas, a citação do livro e o filme, lembrei-me que cada vez mais é realmente a cauda a abanar o cão, e não o contrário, como os combustíveis que aumentam de cada vez que há uma notícia sobre o preço do crude — esquecem-se sempre de mencionar que o barril é negociado em dólares e que ao mesmo tempo que o crude sobe o dólar desce e na volta fica tudo na mesma — ou sobre um oleoduto ou uma plataforma que se incendiou ou um petroleiro que encalhou ou um fulano que se fez explodir num mercado algures no Médio Oriente (como se isso fosse alguma novidade!), ou então as notícias que davam conta do aumento das taxas de juro que faria disparar as prestações do crédito à habitação quando o dito aumento só começou a verificar-se mais de dois anos depois desse alarmismo patético, ou ainda do que se verificou há umas semanas sobre a história do eminente aumento do preço do pão em 50% e da bica a um euro, e quem vê essas notícias pensa assim «fixe, que desculpa porreira para aumentar os rendimentos, vou aumentar e depois ponho as culpas no governo, e com o que vou ganhar sempre vai dar para mais um Audi novo para o rapaz, tadinho, o BMW já deu o que tinha a dar», e não é só em relação aos preços, cada vez mais me convenço de que nos dias de hoje a ordem das coisas se inverteu completamente e que se começa do fim para o princípio, como o vídeo dos Enigma, só que na vida real não regressamos à inocência, e sim, o Samuelson tem razão, é na verdade a cauda que abana o cão.

18/Abril/2008

A ouvir: Loser, Beck

Pavões e galos de Barcelos

Qualquer país que se preze tem de ter um animal como mascote, e os espanhóis têm o touro, os americanos a águia, e os portugueses o galo, mas não um galo qualquer, o de Barcelos, o tal que se levantou a cantar a plenos pulmões na mesa do juiz depois de ter sido cozido e assado (não no caldeirão, esse foi o João Ratão), e penso porque é que não escolheram os coelhos, são mais interessantes do que os galos, pelo menos são mais silenciosos — sim, o português é barulhento, é daqueles cães que ladram mas não mordem, é só ver todos os tugas que se prezem constantemente a barafustar e a dizer mal do Sócrates, o José, não o grego, mas fazer alguma coisa que é bom ninguém faz, só sabem dizer mal, aliás, deve ser uma característica intrínseca do nosso povo, a maledicência parece correr-nos no sangue, a par do saudosismo, do antigamente é que era bom, do no tempo do Salazar isto não acontecia, e realmente não acontecia, no tempo do Salazar quem abrisse a bocarra para dizer um ai ia logo ali para a António Maria Cardoso e depois para Caxias ou até mesmo passar férias a Cabo Verde, naquela estância chamada Tarrafal (que me perdoem os que lá estiveram, não quero ofender ninguém, é só o sarcasmo do Coelho Branco desencantado com a espécie humana a falar), e lá vai o tuga a dizer mal disto e daquilo e de fulano e de sicrano e de beltrano que ganham mais do que eu e que têm uma ganda vida, mas esquece-se de que a vida somos nós que a fazemos — não, não é o gajo de lá de cima, desenganem-se —, o anúncio aos pacotes de leite diz «se não gostar de mim, quem gostará?» mas o tuga prefere assumir o papel de Calimero, sempre a queixar-se, sempre à espera que sejam os outros a mexer-se, como a piada da lâmpada, em que para trocar uma lâmpada um gajo fica quieto a segurar na lâmpada enquanto os outros duzentos rodam a casa, e o galo de Barcelos, orgulhoso e de peito para fora como qualquer macho de pelos no peito (ou penas, neste caso), todo lampeiro a ostentar a crista, e agora pergunto-me de que é que o galo se orgulha, se agora até já há despertadores e ninguém precisa deles para acordar, quem tem o trabalho todo são as galinhas, e penso cá para com os botões de coelhinho se não está na altura de substituir o galo de Barcelos por um outro bicho ainda mais parecido com o bicho tuga, o pavão, que é igualmente inútil mas que gosta ainda mais de se mostrar, mesmo que passe fome e ande a dever dinheiro a Deus e a todo o mundo anda a mostrar o carro último modelo ou o telemóvel topo de gama (apesar de nem sequer saber trabalhar com ele e de gastar uma pipa de massa num aparelho de cujas funcionalidades não precisa), de estoirar dinheiro em roupas de marca só para mostrar o logótipo porque o que importa é mostrar, abre a cauda e mostra as penas, vira o rabo para se ver o logótipo das calças de ganga, e se pensarmos bem sempre foi assim, o português sempre gostou de se exibir, tanto ouro arrancado ao Brasil e desenvolvimento nada, a única coisa que daí restou foi aquele mamarracho pseudo-barroco/rococó em Mafra que ainda por cima está infestado de ratos e que só serviu para inspirar o Saramago, e o mesmo se passou com os fundos de coesão da União Europeia, que só serviram para comprar Mercedes e Audis e BMWs e formação que é bom nada, desenvolvimento nicles, e depois queixamo-nos dos espanhóis que açambarcaram tudo, fizeram eles muito bem, deveríamos ter feito o mesmo, e cada vez tenho mais vontade de lançar uma petição na Internet a favor da alteração do símbolo nacional, para podermos ostentar orgulhosamente um pavão em vez do galo de Barcelos.

15/Abril/2008

A ouvir: We Care a Lot, Faith No More

O brilho das estrelas

Nunca consegui perceber o porquê da histeria colectiva por causa de alguém famoso, pessoas a gritarem e a arrancarem os cabelos e a desmaiarem por um caramelo qualquer, a percorrerem quilómetros para obterem um autógrafo, a aguentarem estoicamente horas e horas a fio, ou até mesmo dias inteiros, só para poderem estar perto da «estrela», como as crianças que passaram noites ao relento à espera de um concerto que acabou por nem se realizar — quando era criança as preocupações principais dos meus pais e de todos os pais que conhecia eram ter sempre comida para dar aos filhos e um tecto seguro para que nunca tivéssemos de dormir ao relento, mas as coisas mudam, hoje em dia o importante é deixar as criancinhas felizes a qualquer preço, mesmo que depois a consequência disso sejam jovens delinquentes a roubar nas lojas ou nas escolas e a atacar as professoras a murro e empurrão por causa dos telemóveis —, adiante, e ponho-me a pensar no que passará pela cabeça de determinadas pessoas para se rebaixarem dessa maneira, porque sim, para mim é impensável chorar baba e ranho por causa de um artista, seja ele quem for, qualquer forma de expressão artística, qualquer obra, seja um livro ou um quadro ou uma canção ou o que for existe por si só independentemente de quem a criou, gosto dos livros do Bret Easton Ellis e do Milan Kundera e da Siri Hustvedt e do Eugénio de Andrade mas quero lá saber das vidas deles para alguma coisa (admito que fiquei triste quando o Eugénio morreu, mas pronto, todos nós falhamos de vez em quando), gosto de ver filmes do Pedro Almodóvar e do Tim Burton e do Spike Jonze e do David Fincher e do Alejandro Amenabar e do Iñarritu e do Cuarón mas fico-me por aí, se são gays ou hetero ou casados ou divorciados ou gordos ou magros é lá com eles, adoro ouvir o Nick Cave e os Depeche Mode e o Leonard Cohen e o Bryan Ferry e os Linkin Park mas nem nos meus sonhos mais bizarros seria capaz de fazer o que aquelas criancinhas fizeram por causa dos Tokyo Hotel (admito que Monsoon até é gira, mas não passa daí), e pergunto-me o que passará pelas cabeças dessa gente, e para quê as revistas cor-de-rosa e as suas parangonas da fulana que se divorciou ou do sicrano que foi fotografado a comprar cuecas ou da cantora (????) que paga uma enormidade por um bife para o chihuaha, será que as pessoas reagem assim por causa da sua menoridade, do seu eterno complexo de inferioridade, o mesmo sentimento que as leva a acreditar em divindades mas que neste caso são de carne e osso, e vivem para elas da mesma forma que uma freira ou um padre vive para Deus, todos os dias rezam nos altares que têm em casa às efígies ou o que quer que seja das ditas estrelas, se necessário for até deixam de comer para conseguirem comprar os CDs ou os livros ou os bilhetes dos concertos, perdem horas e até dias em discussões sobre se o/a cantor/a se fica melhor de blusão de cabedal preto ou de T-shirt justa com os bíceps à mostra a la Marlon Brando no Há Lodo no Cais, organizam-se em clubes de fãs que mais parecem congregações religiosas, é preciso rezar e seguir a estrela para todo o lado, ter o autógrafo da criatura nem que seja na roupa interior — acho que o único autógrafo que alguma vez seria capaz de pedir seria a Deus, e unicamente para ter uma prova física de que existe mesmo — «ai, toquei-lhe no casaco, nunca mais vou lavar as mãos para poder manter o toque dele(a), e dou comigo a achar que se calhar não passamos de traças que se sentem irremediavelmente atraídas pela luz, pelo brilho, mesmo que esse brilho não passe de uma ilusão.

26/Março/2008

A ouvir: Shout, Simple Minds

Oito e oitenta

Ainda não há muito tempo havia censura em Portugal, como todos nós sabemos, e o difícil era saber-se o que quer que fosse; livros eram um produto de luxo a que nem todos podiam aceder — mas também livros para quê, com tanto analfabeto que havia — e era do senso comum que tudo o que aparecia nos poucos jornais e revistas que havia, e também nas notícias que nos entravam pela casa adentro religiosamente às oito horas, tudo o que se dizia e escrevia era passado a pente fino (a caneta azul, melhor dizendo) e só sabíamos aquilo que outros queriam que soubéssemos, e ponho-me a pensar até que ponto é que isso realmente mudou, pois parece-me que quanto mais nos dizem menos sabemos, somos cada vez mais manipulados pela comunicação social, se virmos a mesma notícia em vários órgãos diferentes todos dizem coisas diferentes, num jornal morreram seis pessoas numa atentado no Médio Oriente (como se isso fosse notícia, para mim só o é um dia em que não há nenhum, e acho que nunca aconteceu alguém dizer «hoje não houve atentados e não morreu ninguém»), e se virmos outro jornal já morreram dez, e outro ainda diz que foram só quatro, e mais um que refere que além dos 25 mortos também morreram quatro cães, três gatos e um número indeterminado de peixinhos dourados, e os canais de televisão mostram-nos logo imagens chocantes de aquários escaqueirados e os pobres peixes no estertor da morte, e depois do telejornal acabar há-de vir um comentador para discutir as implicações da morte dos peixinhos no contexto do equilíbrio geopolítico da região e estar duas horas a discorrer à volta disso, enfim, os nossos pais corriam risco de vida só por ouvirem as rádios proibidas pelo regime que não queria que o povo soubesse nada do que se passava do lado de fora do rectângulo, e hoje em dia somos bombardeados com informação por todo o lado, e mesmo que recusemos o jornal gratuito que insistem em oferecer-nos na estação de metro — temos de nos manter informados nem que seja à força —, o entregador vem a correr atrás de nós para nos obrigar a levá-lo até nos virmos obrigados ou a aceitar o dito ou a berrar um ou outro impropério para afastar o tipo, mas pronto, mesmo que tentemos fugir à informação ela vem ter connosco, e não deve tardar muito até encerrarem os que lhe tentam resistir numa instituição de reeducação para nos fazerem mais ou menos o que fizeram ao Alex de A Laranja Mecânica, abrir-nos os olhos à força e obrigar-nos a ver notícias, mas quem controla o filme são eles, e ponho-me a pensar em quem serão eles, não sou por teorias da conspiração nem nada que se pareça, creio que se deve tudo a um acumular de coisas que estão tão interligadas mas que parecem uma só, como um género de corrente que é só uma peça mas composta por vários elos, ou então uma bola de neve, milhões de pequenos flocos que se juntam num amontoado que em última análise tem o poder de gerar destruição onde quer que passe, e quem ler isto pode achar que sou demasiado fria e insensível em relação aos atentados mas isso é devido a se terem tornado tão banais, como quando antigamente quase não existiam pizzarias e comer pizza era um acontecimento, e hoje há tantas que nem lhes ligamos, e penso aqui para com os meus botõezinhos de coelho branco que com a informação é um pouco assim, só lhe dávamos valor quando ela era escassa, e no fundo tudo se resume a isso, em economia o valor de um bem é determinado pela sua abundância ou escassez, durante a ditadura a informação era preciosa porque quase não existia mas hoje em dia há tanta que já não tem qualquer valor, e lá diz o povo e com razão que não há fome que não dê em fartura…

18/Março/2008
A ouvir: Ordinary World, Duran Duran

Buddah of Suburbia, David Bowie




Tinha ouvido esta música apenas uma vez, há muitos anos... graças à boa memória do Coelhinho e aos génios do Youtube, pude voltar a ouvi-la novamente.

Olhos negros

Descobriu-se recentemente que todos os olhos azuis têm uma origem comum, e que se devem a uma mutação genética ocorrida há uns milhares de anos, no tempo em que toda a gente tinha os olhos castanhos, e é por isso que os olhos claros chamam à atenção, por serem diferentes, é esquisito todos termos os olhos de uma cor e de repente vemos alguém com olhos diferentes, como se fossem líquidos, mas por mais evolução e mutações genéticas que haja continuo a preferir os castanhos, daquele castanho tão escuro que quase não se consegue distinguir a pupila da íris, os olhos castanhos que são como buracos negros que sugam toda a luz que entra por eles e irradiam um calor ofuscante, o Eugénio de Andrade disse que aos olhos negros tarda em chegar a noite e é verdade, tarda em chegar porque os olhos negros são como sóis que nos aquecem a alma quando pousam em nós (temos alma?), e é curioso como é que algo tão negro pode ser tão luminoso, é quase um paradoxo porque o negro é a ausência de luz e os olhos negros são luz pura, bright eyes burning life fire como na canção do Garfunkel, enfim, tudo isto para dizer que tenho saudades dos olhos negros que estão em casa à minha espera e vou contando os minutos que faltam até voltar a tê-los mergulhados nos meus.
14/Março/2008

A ouvir: (Are You The One) I’ve Been Waiting For?, Nick Cave & The Bad Seeds

Narcisos

Está quase a acabar a época dos narcisos, essas florzinhas amarelas que têm tanto de belas como de frágeis, e é quase paradoxal que agora que a Primavera está quase a começar é que os narcisos desaparecem, a Primavera é que é suposto ser a época de ouro das flores, mas os narcisos tinham de ser diferentes, o ser diferente dos outros é como que uma característica da sua personalidade (talvez as flores não tenham personalidade, talvez tenham, não sabemos, nunca ninguém conseguiu falar com nenhuma para descobrir se sim ou se não, é daqueles mistérios que ainda não têm solução mas que podem vir a ter um dia, e lá estou eu a divagar), os narcisos são talvez a flor mais bela à face do terceiro calhau a contar do Sol, e o mito do seu surgimento também é belo, o jovem que se enamorou tão perdidamente pelo seu próprio reflexo que acabou por se consumir de desgosto e transformar-se nessas obras de arte vivas e amarelas, mas há outros narcisos, narcisos com braços e pernas, hoje em dia a sociedade pretende fazer de nós narcisos mas tenho dúvidas sobre o que nasceu primeiro, o culto do corpo ou a pressão da sociedade, como a história do ovo e da galinha (parece que já se «descobriu» que foi o ovo), mas pensando melhor acho que não foi assim, sempre existiu o culto da beleza, simplesmente o conceito de belo é que foi mudando, a diferença é que hoje em dia existe cada vez mais maquilhagem e cremes e dietas loucas e tintas de cabelo e cirurgia plástica e Botox e lipoaspirações e liftings e peelings e implantes disto e daquilo (e muuuito Photoshop, o que é que pensam?), e toda uma panóplia de artimanhas para fazer parecer o que não se é, e por mais que se tente escapar a esta louca lavagem ao cérebro é difícil resistir-lhe, e damos connosco a ansiar ter 18 anos para sempre, numa luta inglória contra o tempo que não pára (tique-taque-tique-taque-tique-taque, lá está outra vez o relógio), e a roermo-nos de inveja daquelas fotografias de pessoas supostamente perfeitas que nos entram pela retina adentro, e pensamos «porque é que não sou assim?», e a resposta é simples, nem todas as flores são narcisos, também tem de haver rosas, cravos, malmequeres, violetas, miosótis, túlipas, estrelícias, ou dedaleias e camomilas e dioneias e que comem moscas, se todos fossemos iguais o mundo seria demasiado sensaborão, viva a diversidade, ainda bem que há muito por onde escolher, mas parece que é destino do ser humano ansiar aquilo que não pode ter, tal como o Narciso que se apaixonou por si próprio (bem feito, quem o mandou desprezar a ninfa?), ou como todos aqueles que morreram em busca da fonte da juventude, ou dos que dariam tudo por viver para sempre, para quê, pergunto-me, «para sempre» sempre me pareceu demasiado tempo, enfim, a insatisfação é própria do ser humano, quer sempre mais, por isso é que deixámos de ser macacos e passámos a ser como somos, nunca nada é suficiente, essa sede de vida que nos devora e que nos consome por dentro, e se calhar queremos o impossível precisamente por isso, por ser impossível, porque temos medo do que poderemos encontrar ao conseguirmos o que queremos, e fazemos todos como diz o Vergílio Ferreira e amamos o impossível porque é o único que não pode decepcionar-nos.

05/Março/2008

A ouvir: Stupid Girl, Garbage

Pequenas insignificâncias que fazem toda a diferença

Há dias um texto do José Luís Peixoto publicado no Jornal de Letras sobre a água fez-me ruminar na importância dos pequenos detalhes que marcam a diferença (diga-se de passagem que ele tem toda a razão, se faltar um orador numa conferência ou palestra, paciência, é da maneira que os outros falam mais, mas se faltarem as garrafas de água em cima da mesa é quase o fim do mundo, toda a gente começa a remexer-se nas cadeiras), e pensei em como a nossa vida seria mais complicada se não houvesse, por exemplo, aquelas coisinhas de plástico à volta das pontas dos atacadores do sapato, como seria difícil enfiar os atacadores naqueles buraquinhos, que por sua vez também têm uma coisa maravilhosa que também nos facilita e muito a vida, os ilhós, como iríamos enfiar os atacadores — revestidos a plástico, claro está! — nos buracos sem os ilhós, e como não agradecer aos inventores dos post-it pela sua maravilhosa invenção, como seria possível deixarmos recados ou pequenos lembretes sem esses papelinhos amarelos (ou de outras cores, evidentemente, agora há-os de todas as cores e feitios), e viva as fraldas descartáveis, porque não consigo imaginar a minha vida se tivesse de lavar fraldas todos os dias e passá-las a ferro, sei que os ambientalistas odeiam essas coisas que ficam durante 500 anos a poluir a Terra, também tenho pena do planeta mas infelizmente ainda não ganhei o Euromilhões para me poder dar ao luxo de ter todas as preocupações ambientais que se devem ter, gostaria de ter em casa vários caixotes do lixo para poder separar o lixo convenientemente mas como a casa é pequena não dá, e graças a todos os santinhos que existem carregadores de pilhas para abastecer os brinquedos do bebé e o leitor de MP3 sem o qual se torna quase impossível andar nos transportes públicos, e ainda assim temos de levar com a música dos outros porque há pessoas incivilizadas que não sabem quem foi Kant nem que a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros, enfim, há muitas pequenas coisas que parecem insignificantes e às quais não damos a menor importância mas que fazem toda a diferença, como aquelas pequenas letrinhas nos contratos das seguradoras e dos empréstimos bancários que só damos por elas quando os problemas surgem, e é preciso estarmos atentos a todas as palavrinhas e aos seus significados, um só deslize pode arruinar tudo, basta uma palavra mal interpretada para haver consequências imprevisíveis, quantas guerras começaram por causa de mal-entendidos, já para não falar das religiões, oh céus, a história das 70 huris de grandes olhos castanhos (não há olhos mais belos do que os castanhos, mas isso fica para outra conversa) no paraíso à espera dos mártires, e zás, levam tudo à letra e depois lá vão eles mandar-se pelos ares para irem mais depressa para o paraíso, não pensam sequer no que irão fazer depois de fazerem as 70 virgens deixarem de o ser, a eternidade é muito longa e a virgindade é daquelas coisas que, depois de se perder, já não se volta a recuperar, 70 virgens é muito pouco para toda a eternidade, e falando ainda de virgens, a história da Maria também está muito mal contada, porque no entender de alguns especialistas a palavra que estava nos textos sagrados quereria dizer «rapariga jovem» e foi mal traduzida para «virgem», e eis que uma das bases da religião cristã não passa afinal de um erro de tradução…
Realmente, há pequenas insignificâncias que fazem toda a diferença.

03/Março/2008

A ouvir: A Question of Lust, Depeche Mode

Waterworld

Quem diria que dois dias depois do dilúvio que se abateu aqui sobre as sete colinas estaria este sol radioso que está lá fora, e agora andam todos a sacudir a água do capote no sentido literal da expressão, ninguém quer ser culpado do caos que se instalou, nem sequer o S. Pedro que agora até fechou a torneira lá de cima, mas limpar sarjetas que é bom, nem pensar, o que dá é construir construir construir até mais não até haver mais casas do que famílias, só que nem assim os preços baixam e qualquer casota de coelho custa sempre mais do que aquilo que se pode pagar por ela, mas lá tem de ser porque não dá para morar debaixo da ponte porque as pontes também não estão lá em muito bom estado, olhem só a de Entre-os-Rios, que já caiu há tantos anos e na altura também sacudiram a água do capote, enfim, e o preço das casotas continua pela hora da morte por mais que se construa, e até se constrói na várzea de Loures, um terreno tão fértil, tão fértil, tão fértil que até dá prédios, diz a piada, mas depois chove e toda a zona fica transformada num Waterworld a sério, não o do KC, embora este também tenha provocado estragos que talvez dessem para financiar o dito, coitado, que até faliu por causa do filme, devia ter-se ficado pelos lobos e pelos índios, que chatice, mas nos dias de hoje os patos-bravos é que mandam e a ordem é construir construir construir, mesmo que depois as casotas fiquem às moscas porque os coelhos não têm dinheiro para elas, e pergunto-me aqui para com os meus botõezinhos de Coelho Branco se os ditos patos-bravos não sofrerão de algum tipo de doença compulsiva e colectiva, e fico com a sensação de que, embora não tendo formação médica, descobri uma nova doença, o complexo Lego, que faz com que esses senhores não consigam parar de construir coisas, torres, casas, prédios, castelos, o que quer que seja, um vício doentio, e quando já não há mais terreno para construir destrói-se o que já havia para fazer outro, como a criança que desmancha a construção em legos para fazer outra coisa, como o Estoril Sol que foi abaixo para fazerem lá outra coisa, uns apartamentos estupidamente caros só para os muito ricos, e sei que em Portugal já houve muitos primeiros prémios do Euromilhões mas ainda assim para quê um apartamento quando se pode ter moradias com jardins e piscinas e espaço à farta para o cão e para o gato — de raça e muito caros, evidentemente — mas enfim, há gostos para tudo, e há que construir construir construir para as Câmaras terem dinheiro, porque senão não conseguem financiar a limpeza das sarjetas e depois quando chove fica tudo inundado e todos sacodem a água do capote do sentido literal da expressão…

20/Fevereiro/2008

A ouvir: Henry Lee, Nick Cave & P. J. Harvey